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|  João de Deus
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|  Flores do Campo
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   João de Deus
   FLORES DO CAMPO


   EMBLEMA

 //-- Camões e Byron– Scepticismo e Crença --// 

     Vem d’alto gozar, lirio!
     Noite estrellada e tepida;
     A vista ao céo intrepida
     Lança, penetra o Empyreo.


     Dilata os seios tumidos;
     Larga este terreo albergue;
     Nas azas d’alma te ergue;
     Ergue os teus olhos humidos


     Que vês?– Soes, de tal sorte
     Que os crêra tochas pallidas,
     Quando as guedelhas, madidas
     De sangue, arrasta a morte.


     – Transpõe-n’os; que, elevando-te,
     Por cada um d’aquelles,
     Milhões e milhões d’elles
     Verás alumiando-te.


     Ávante pois, acima
     Dos soes d’uma luz tremula;
     Alma dos anjos emula!
     Deus o teu vôo anima.


     Que vês?– Um vacuo eterno.
     – E n’elle?– Em ermo tumulo,
     Em ignea letra (cumulo
     D’horror) Byron– o inferno.


     – Foge.– O horror fascina-me.
     São reprobos que exhalam
     Horridos ais que abalam
     O inferno: oh Deus! anima-me.


     – Escuta-os.– Escutemol-os.
     Como elles bramem, rugem,
     E o espaço uivando estrugem…
     Gelam-se os membros tremulos.


     – Entra.– Não posso.– Arromba.
     – Prohibem-m’o.– Subleva-te.
     – Prohibe-o Deus.– Eleva-te.
     Acima, ingenua pomba!


     Que vês? A luz clareia-me.
     Que céo, que azul ethereo!
     Oh extasi, oh mysterio!
     Sobeja a vida, anceia-me.


     – Falla.– Deus! que harmonia!
     Aqui a alma exalta-se;
     A alma aqui dilata-se…
     Camões!– É a poesia.

   Coimbra.


   A UMA CARTA ANONYMA


     Não sabe a flôr quem manda a luz do dia,
     Nem quem lhe esparge o nectar que a deleita
     Ao vir raiando a aurora,
     E ella agradece as lagrimas que aceita,
     E ella as converte em balsamos que envia
     zAo mysterio, que adora.

   Lamartine.
   Coimbra.


   DUAS ROSAS


     Que bonita, meu amor!
     Que perfeita, que formosa!
     A ti pozeram-te Rosa,
     Não te fizeram favor.
     A rosa, quem ha que a veja
     Bandeando, sem gostar?
     Mas por mais linda que seja
     A rosa, quando se embala,
     Não te ganha nem iguala
     A ti em indo a andar.


     A rosa tem linda côr,
     Não ha flôr de côr mais linda;
     Mas a tua côr ainda
     É mais fina e é melhor.
     Murcha a rosa (que desgosto!)
     Só de lhe a gente bulir;
     E essas rosas do teu rosto
     É em alguem te tocando
     Que parece mesmo quando
     Ellas acabam de abrir.


     Cheiro, o da rosa, esse não,
     Não é mais do meu agrado,
     Que o teu bafo perfumado,
     A tua respiração.
     Depois a rosa em abrindo
     Vai-se-lhe o cheiro tambem:
     A tua bocca em te rindo
     Só o bom cheiro que exhala…
     E quando fallas, a falla,
     Isso é que a rosa não tem.


     Ella o que tem, meu amor?
     O cheiro, a côr e mais nada.
     Confessa, rosa animada!
     Que és outra casta de flôr.
     Os olhos só elles valem
     Duas estrellas, bem vês;
     Pois vozes que a tua igualem
     Na doçura, na pureza,
     Na terra, não, com certeza;
     Agora no céo, talvez.


     Não ha assim perfeição,
     Não ha nada tão perfeito,
     Mas é um grande defeito
     O de não ter coração.
     N’isso é que te leva a palma
     A rosa, sendo uma flôr
     – Sem voz, sem vida, sem alma,
     Que abre logo á luz da aurora
     E á noite esconde-se e chora
     Pelo sol, o seu amor.


     Ora e se a rosa, vê bem,
     Tem amor, não tendo vida,
     Será coisa permittida
     Tu não amares ninguem?
     Suppões que Deus te agradece
     Essa isenção, minha flôr!
     Deus a ninguem reconhece
     Por filho senão quem ama:
     A terra e o céo proclama
     Que elle é todo puro amor.

   Messines.


   A UMA MULHER


     Amo-te a ti, e a Deus.
     Teus sonhos são riquezas
     Talvez e fasto. Os meus,
     És tu, que me desprezas.


     Deixal-o. Amor acaso
     É racional? Não é.
     O fogo em que me abrazo
     É como a luz da fé;


     Que além de cega, apaga
     O facho da razão.
     Ama-se e não se indaga
     Se se é amado ou não.


     Amo-te. O mais ignoro.
     Mas os meus ternos ais
     E as lagrimas que chóro
     Podem dizer o mais.


     Que chóro; se te admira.
     Nunca tiveste amor.
     Quem tem amor, suspira,
     E o suspirar é dôr.


     Ah! quando abraço e beijo
     O travesseiro e, assim,
     Acórdo e te não vejo,
     Vejo-me só a mim;


     Não sei, mulher! que anceio
     Se me traduz n’um ai!
     Confrange-se-me o seio,
     Rebenta o pranto e cái.


     Então, se por encanto
     Fallando em ti, mas só,
     Todo banhado em pranto
     Me visses, tinhas dó.


     Tinhas. A piedade
     É filha da mulher,
     Que sempre quiz metade
     D’uma afflicção qualquer.


     Havias ao teu rosto
     De me apertar a mim,
     D’encher, fartar de gosto,
     Todo este abysmo; sim.


     Vós desprezaes embora
     Culto e adoração
     De quem vos ama; agora
     As dôres, essas não.

   Messines.


   A D. CANDIDA NAZARETH

   Por occasião da morte de sua irmã Rachel e, poucos dias depois, de sua mãi


     Despe o luto da tua soledade
     E vem junto de mim, lirio esquecidox
     Do orvalho do céo!
     Tens nos meus olhos pranto de piedade,
     E se és, mulher! irmã dos que hão soffrido,
     Mulher! sou irmão teu.


     Consolos não te dou, que não existe
     Quem de lagrimas suas nunca enxuto
     Possa as d’outro enxugar:
     Não póde allivios dar quem vive triste,
     Mas é-me dôce a mim chorar se escuto
     Alguem tambem chorar.


     Botão de rosa murcho á luz da aurora!
     Que peccado equilibra o teu martyrio
     Na balança de Deus?
     Se é como justo e bom que elle se adora
     Quem te ha mudado a ti, ó rosa! em lirio,
     E em lirio os labios teus?


     Não enche elle de balsamos o calix
     Da flôr a mais humilde, e esses espaços
     Não enche elle de luz?
     Não veio o Filho seu, lirio dos valles!
     Só por amor de nós tomar nos braços
     Os braços d’uma cruz?


     Mulher, mulher! quando eu n’um cemiterio
     Levanto o pó dos tumulos sósinho:
     Eis, digo, eis o que eu sou.
     Mas quando penso bem n’esse mysterio
     Da virtude infeliz: vai teu caminho;
     Dois mundos Deus creou.


     Deus não dispara a setta envenenada
     Á pombinha que aos ares despedira
     Com mão traidora e vil.
     Imagem sua, Deus não volve ao nada,
     Não aniquila a flôr que ao chão cahira
     Lá d’esse eterno abril.


     Has-de, cysne! expirando alçar teu canto,
     Has-de lá quando a lua da montanha
     Te acene o extremo adeus,
     Voar, Candida! ao céo, e ebria de encanto,
     No oceano d’amor que as almas banha,
     Unir teu canto aos seus.


     Seus, d’ellas, mãi e irmã, cinzas cobertas
     D’um só jacto de terra… oh desventura!
     Oh destino cruel!
     Vejo-as ainda ir com as mãos incertas
     Guiando-se uma á outra á sepultura,
     E a mãi: Rachel! Rachel!

   Coimbra.


   AMOR


     Amo-te muito, muito.
     Reluz-me o paraiso
     N’um teu olhar fortuito,
     N’um teu fugaz sorriso.


     Quando em silencio finges
     Que um beijo foi furtado
     E o rosto desmaiado
     De côr de rosa tinges;


     Dir-se-ha que a rosa deve
     Assim ficar com pejo,
     Quando a furtar-lhe um beijo
     O zephyro se atreve;


     E ás vezes que te assalta
     Não sei que idéa, joven!
     Que o rosto se te esmalta
     De lagrimas que chovem;


     Que fogo é que em ti lavra
     E as forças te aniquila,
     Que choras, mas tranquilla,
     E nem uma palavra?


     Oh! se essa mudez tua
     É como a que eu conservo,
     Lá quando á noite observo
     O que no céo fluctua;


     Ou quando, á luz que adoro,
     Ás horas do infinito,
     Nas rochas de granito
     Os braços cruzo e chóro;


     Amamo-nos… Não cabe
     Em nossa pobre lingua
     O que a alma sente, á mingua
     De voz, que só Deus sabe.

   Coimbra.


   A DONZELLA E O MUSGO


     Um dia, não sei que eu tinha…
     Uma tristeza tamanha!
     E lembra-me ir á montanha,
     Que temos aqui vizinha,
     Onde em tempo me entretinha
     Horas e horas sósinha
     Quando ainda se não estranha
     Que n’uma teia de aranha
     Se prenda uma innocentinha,
     Ou atraz d’uma avesinha
     Se cance a vêr se a apanha.


     Depois é que o mundo falla
     E se mette com a vida
     De quem ás vezes se cala
     Por ser mais bem procedida.
     Que esta gente que faz gala
     Em coisa, que vê, contal-a,
     E sendo mal permittida
     Inda em cima acrescental-a,
     Teem a lingua comprida
     E bem deviam cortal-a.


     Vou pelo córrego acima,
     Subo á ponta do penedo;
     Que a vida só quem a estima
     É que da morte tem medo.
     A mesma tristeza anima
     A encarar a pé quedo
     A morte que se aproxima
     A tirar-nos do degredo,
     Que inda a gente se lastima
     De não acabar mais cedo.


     E alli sósinha chorando
     Me lembrava, ora a ventura
     Da minha infancia, inda quando
     Levava os dias brincando;
     Ora a desgraça futura,
     Que me estava annunciando
     Não sei se a minha amargura,
     Se uma nuvem, grande e escura,
     Que se ia no ar formando
     E vinha já avançando,
     Como que á minha procura.


     E ainda o pranto corria
     E o cabello me batia
     No rosto, que me doía,
     Tal era a força do vento;
     Já tudo tão pardacento
     A nevoa e chuva fazia
     Que eu olhava, mas dizia:
     É nuvem ou penedia
     Aquelle vulto cinzento?
     O mar brilhante algum dia
     Como prata luzidia
     Já ninguem o distinguia
     Da terra e do firmamento:
     Uivar só é que se ouvia,
     Mas uivar sem sentimento;
     E como em grande tormento
     Se desvaira a phantasia:
     – Fosse eu mar, disse; valia
     Mais ser coisa bruta e fria,
     Como a rocha onde me sento.


     Faz um trovão no momento
     Que soltava esta heresia;
     E áquella rouca harmonia
     Occorre-me um pensamento,
     Que me dá uma pancada
     O coração de tal modo,
     Como se o rochedo todo
     Desandasse na chapada.


     Era a voz da consciencia
     Que me accusava do crime
     De negar á Providencia
     A razão com que me opprime.
     Peço perdão, commovi-me
     E n’um extasi sublime
     Lagrimas de penitencia,
     Como um balsamo, uma essencia,
     Purificam-me e senti-me
     Com uma nova existencia.


     Ólho; as nuvens esvaíam-se:
     Os roncos do mar ouviam-se,
     Mas já mais de espaço a espaço.
     O sol ainda tão baço,
     De luz tão pouco brilhante,
     Que se media a compasso
     Como a cara d’um gigante,
     Descobre-se e resplandece!
     Ao longe o mar apparece;
     E tudo, mar, terra e céos
     Tão formoso me parece,
     Como se agora tivesse
     Sahido das mãos de Deus!


     No rochedo onde descança
     Meu corpo desfallecido,
     O verde musgo, vestido
     Sempre da côr da esperança,
     Agora reverdecido,
     Me ensina a ter confiança
     N’esse que do céo nos lança
     Em dia tempestuoso,
     Só para nosso repouso
     O arco da alliança.


     Pobre musgo, descuidado,
     Sem olhos para chorar,
     Sem poder alliviar
     Com seu pranto um desgraçado,
     Consolar-se e consolar!
     Fallas mais a meu agrado
     Que o livro mais afamado
     D’esses livros, que em lugar
     De nos dar consolação,
     Nos fazem cahir no chão
     Um pranto mal empregado,
     E inda mais amargurado
     Nos deixam o coração.


     Colhi-o, pul-o no seio,
     E é hoje o livro que leio.

   Messines.


   ULTIMO ADEUS


     Prestes, se inda na rocha de granito
     D’onde em tempo me vias te sentares,
     Não olhes para a terra ou para os mares,
     Olha sim para o céo, que é lá que habito.


     Lá tão longe de ti, mas não do terno,
     Bondoso pai que os dois nos ha gerado,
     Só para mágoas não, que bem guardado
     Nos tem tambem no céo prazer eterno.


     Não se é só pó no fim de tanta mágoa.
     Senão, diga-me alguem que allivio é este
     Que sinto, quando á abobada celeste
     Alevanto os meus olhos rasos d’agua.


     Mentem os céos tambem? Os céos maldigo.
     Feras, tigres, tambem o céo povôam?
     Tambem os labios lá sorrindo côam
     Veneno desleal em beijo amigo?


     Mas na dôr é que os astros nos sorriem,
     E os homens não sorriem na desdita.
     Astros! fio-me em vós, e Deus permitta
     Que os infelizes sempre em vós se fiem.


     Intima voz do fundo, bem do fundo
     D’alma me diz (e as lagrimas me saltam):
     Vês os milhões de soes que o espaço esmaltam?
     Pisa a terra a teus pés, inda ha mais mundo.


     Ha depois d’esta vida inda outra vida.
     Não se reduz a nada um grão d’arêa,
     E havia de a nossa alma, a nossa idêa
     Nas ruinas do pó ficar perdida?


     – Isso que pensa e quer (até me admiro),
     Isso que a luz nos traz, que a luz nos leva,
     Isso que me abre o céo que ao céo me eleva
     N’um teu cançado olhar, n’um teu suspiro!


     Onde, não sei eu bem, mas sei que existe
     Deus remunerador. Depois de mortos
     Hemos de vêr-nos, e um no outro absortos
     Fartar de glorias este amor tão triste.


     – Tão triste, e o coração que me adivinha
     N’este supplicio nosso este tormento!
     Nunca dos labios teus minimo alento
     N’um só beijo bebi em vida minha!


     E morro sem te vêr! Cabeça doida,
     Desasisado amor! Sonhar afflicto
     Um sonho até morrer… Não: resuscito;
     Morto tenho eu vivido a vida toda.



   ROSAS


     Trazeis-me rosas; d’onde as heis trazido,
     Boa velhinha e minha boa amiga?
     Rosas no inverno! permitti que o diga,
     Sois feiticeira: d’onde as heis colhido?


     Na primavera de meus annos, ólho,
     Mas vejo abrolhos e não vejo flôres:
     E vós colhêl-as, como as eu não colho…
     Sois feiticeira– enfeitiçaes d’amores.


     Enfeitiçaes que a formosura, crêde,
     Não vem da face avelludada e bella;
     A formosura vem só d’alma; é d’ella
     Que brota a fonte que nos mata a sêde.


     Vós sois velhinha, já não tendes côres
     Que o rosto animem e que os olhos prendam,
     Mas tendes prendas que o amor accendam,
     Tendes ainda no inverno… flôres.

   Evora.


   ROSA E ROSAS


     A Rosa trouxe-me rosas
     E nada mais natural,
     Mas eu prendas tão mimosas
     É que não tenho; inda mal.


     Quando tinha, se me désse,
     Não digo mais que uma flôr,
     Talvez de flôres lhe enchesse
     Esses cofrinhos d’amor.


     Aguas passadas, Rosinha!
     Deixal-o; veja se vê
     N’este chão que já foi vinha
     Coisa que ainda se dê.


     Veja e escolha. Está na mesa
     O que ha em casa; é tirar
     – Tirar com toda a franqueza;
     Inda hão-de espinhos sobrar.


     Mas se espinhos, mas se abrolhos
     Lhe não agradam, amor!
     Mire-se bem nos meus olhos,
     Que ha-de ahi vêr… uma flôr.

   Evora.


   A HERMANN

 //-- Por occasião d’um beneficio a um asylo --// 

     «Conchega a mãi ao peito o filho caro;
     Estende a pomba as azas no seu ninho
     Pelos filhinhos seus.
     Embala o arbusto agreste; o fructo amaro.
     Guia a bussola o nauta em seu caminho,
     Como um dedo de Deus.


     «Bebe a nuvem no mar, no rio a fera;
     Acha o tigre covil na antiga Hyrcania,
     Hoje em dia, Ghilã;
     Renasce a planta á luz da primavera,
     E no calix da flôr gotta espontanea
     Cahe á luz da manhã.


     «Só eu no mundo um gosto em vão pretendo:
     Guebro entre os persas, entre os indios pária,
     Judeu entre christãos,
     Só eu debalde ao céo as mãos estendo,
     Como o naufrago á praia solitaria
     Debalde estende as mãos.


     «Tenho no livro azul onde Elle escreve
     Esse nome, que nunca pronuncia
     Quem bem o soletrou,
     Mil vezes tenho lido que não deve
     Queixar-se mais que a flôr que vive um dia
     Um verme como eu sou.


     «Porém, chorando, as mágoas diminuem.
     Custa muito soffrer sem que um gemido
     Ah! solte a nossa dôr.
     E se aos olhos as lagrimas affluem,
     É que este allivio nosso é permittido.
     O céo orvalha a flor.»


     Diz isto o orphão. De alma os ais lhe sahem,
     Como os suspiros de harpa eolea em ermo.
     Ninguem no mundo o ouviu.
     Mas, se a teus pés as lagrimas lhe cahem,
     Tocou a mão de Christo a mão do enfermo;
     O Lazaro surgiu.


     Por isso, Hermann! espantas-me. Não scismo
     Nos prodigios da milagrosa vara
     Que o Senhor Deus te deu.
     Teu coração, Moysés do christianismo!
     Tua alma é que eu admiro, e te invejára
     Se o que é teu… fosse teu.

   Coimbra.


   PRESENTIMENTO


     Emilia! não vês a lua
     Como vacilla e fluctua,
     Ora avança, ora recúa,
     E não ha passar d’alli?
     Tu és a imagem d’ella;
     És tão sympathica e bella,
     Meiga e timida, que ao vêl-a
     Me lembra sempre de ti!


     Tu és o botão de rosa
     Que abraçado á mãi formosa
     Só folga, só vive e goza
     N’aquella triste união;
     Treme até de ouvir a aragem
     Passar por entre a folhagem:
     Emilia! tu és a imagem
     Do mais timido botão.


     Mas embora: o tempo gira.
     Um dia o botão, que aspira
     O ar da manhã… suspira
     E levanta o collo ao céo:
     Vê vir raiando a aurora,
     Abre o seio á luz que adora,
     Correm-lhe as lagrimas, chora…
     Chora o tempo que perdeu!


     Porque elle, Emilia! não teme
     Que a luz da aurora o queime;
     Elle suspira, elle geme
     Por vêr a luz que o creou.
     Nem tambem a lua pára:
     Se algumas vezes repara
     N’uma nuvem menos clara,
     É um momento e… passou.


     Não ha existencia alguma
     Que não tenha amor; nenhuma;
     Porque o amor é, em summa,
     Essencia de todo o sêr.
     Ha sempre quem nos attráia.
     Mil vezes que a onda cáia,
     Ha uma rocha, uma praia
     Aonde a onda vai ter.


     Tu andas já presentida
     D’essa voz que te convida
     A encetar n’esta vida
     Ai! uma vida melhor…
     E em breve desenganada
     D’essa existencia isolada,
     Darás n’alma franca entrada
     A sentimentos de amor!

   Silves.


   MARINA


   I. APPARIÇÃO


     Como esse olhar é dôce!
     Dôce da mesma sorte
     Como se nunca fosse
     Toldado pela morte:


     Como se alumiasse
     O sol ainda em vida
     As rosas d’essa face…
     Agora carcomida.


     Colhesse-as eu mais cedo
     E logo que alvorece;
     Já não tivesse medo
     Que a terra m’as comesse.


     Mas pura, como a neve
     Que ás vezes cahe na serra,
     É que a nossa alma deve
     Tambem voar da terra.


     Gelasse a morte fria
     A mão profanadora
     Que te ennublasse um dia
     A luz que dás agora.


     É n’essa côr tão linda,
     Rosa da madrugada!
     Que sinto a alma ainda
     Andar-me enfeitiçada.


     Se um dia nos meus braços
     Te desbotasse as côres,
     Passavam os abraços…
     Passavam os amores!


     Oh! não: mil vezes antes
     No céo lá onde habitas,
     E os rapidos instantes
     Que vens e me visitas


     N’este degredo nosso,
     Que tanta gente estima,
     E eu, só porque não posso,
     Não largo e vou lá cima.


     Vem tu cá baixo, abala,
     Deixa em podendo o collo
     Tão terno que te embala,
     E vem-me dar consolo.


     Como essa imagem pura
     Ah! sobrevive ao nada
     E escapa á sepultura,
     Tão fresca e perfumada!


     Nunca uma noite eu deixe
     De estar a vêr que existes,
     Em quanto me não feche
     O somno os olhos tristes.


     E n’esse largo espaço
     Que te não vejo, espero
     Lhe contes o que eu passo
     N’este aspero desterro:


     Que assim que te não veja
     É noite fria e escura,
     Noite que mette inveja
     Á mesma sepultura!



   II. SAUDADE


     Em acordando agora,
     O meu contentamento
     É vêr em cada aurora
     Um dia de tormento!


     Podesse eu dar-te a prova
     Dos dias que me esperam,
     Lançando-me na cova
     Onde elles te pozeram!


     Lançassem-me algum dia
     Ao pé, que de repente
     O coração te havia
     De ainda pular quente…


     A face cobrar logo
     A fórma e côr perdida,
     E a bocca toda fogo
     Ah! inspirar-me a vida!


     Supplíca, ó anjo! implora
     Ao Pai universal
     Que me deixe ir embora
     D’este horroroso val


     De lagrimas amargas,
     E turvas de tal modo,
     Como umas nuvens largas
     Que tapam o céo todo!



   III. ETERNIDADE


     Inferno e céo, conforme
     A nossa fé, confesso
     Que é um mysterio enorme,
     É um mysterio immenso.


     Mas um mysterio é tudo:
     Folhinha d’herva, e estrella,
     Não ha comprehendêl-a!
     É contemplal-a mudo.


     E a herva, como existe,
     A mim quem m’o diria,
     Se a luz que me alumia
     Nem sabe em que consiste?


     Mas uma coisa sabe
     O que a cabeça ignora
     – O coração… que mora
     Em peito onde não cabe.


     Ha uma luz mais clara
     Que a luz do pensamento:
     A d’essa imagem cara…
     A d’este sentimento!



   IV. … 21 DE SETEMBRO


     Ha uma hora ou mais,
     Marina! que contemplo
     A casa de teus paes
     Que é para mim um templo.


     Está a porta aberta,
     E vejo alumiada
     A parte descoberta
     Da casa da entrada.


     Lá andam a passar
     Do quarto onde acabaste
     Á casa de jantar
     Os vultos, que deixaste.


     Os vultos, que os vestidos
     Tão negros que pozeram,
     De luto, tão compridos,
     Não sei que ar lhes deram!


     A tua bella irmã,
     A tua piedade,
     A rosa da manhã,
     A flôr da mocidade,


     Quem lhe diria a ella,
     Tão cheia de alegria,
     Que haviamos de vêl-a
     Assim já hoje em dia!


     É esta vida um mar,
     E bem se póde a gente,
     Marina! comparar
     A rapida corrente,


     Que vai de lado a lado
     Por esses valles fóra
     Sem nunca lhe ser dado
     Ter a menor demora.


     Pára, quando a engole
     Aquelle mar sem fundo;
     Nem pára; é como o sol
     E como todo o mundo…


     Ahi não pára nada,
     Tudo viaja e anda,
     Que a ordem lhe foi dada,
     E dada por quem manda.


     Chega a corrente lá,
     Engole-a logo a onda:
     Depois, que é d’ella já?
     A nuvem que responda.


     Que a nuvem que nos passa
     Pela manhã nos ares,
     Era hontem a fumaça
     Que andava n’esses mares;


     E a nevoa, que tu vês
     Nas ondas fluctuantes,
     Corria-nos aos pés
     Talvez um dia antes.


     A agua é que no giro
     Em que anda eternamente
     Não deu nunca um suspiro
     Em prova de que sente.


     .....................




   N’UM ALBUM

 //-- Pedindo-se ao author uma poesia --// 

     Não me admira a mim que o sol, monarcha
     De indisputavel throno, e throno eterno
     Em céo e terra e mar;
     Que em seu imperio o mundo inteiro abarca
     Abaixe á pobre flôr seu dôce e terno,
     Mavioso olhar.


     Não me admira a mim que a crystallina,
     Tão pura, onda do mar, que espelha a face
     Do astro creador,
     Que essas asperas rochas cava e mina,
     Á praia toda languida se abrace
     E toda amor!


     Mas sendo vós um sêr mais precioso
     Do que onda e sol– um anjo de poesia
     Inspirada e que inspira;
     Que ás minhas mãos, das vossas, tão mimoso,
     Delicado penhor descesse um dia
     É que me admira.


     Quizera nos meus cofres de poeta
     Ter as riquezas todas do Oriente,
     E com mãos liberaes
     Expulsar esta duvida que inquieta
     Um grato coração que apenas sente
     E… nada mais!


     De limpido diamante e fio de oiro,
     Quizera-vos tecer collar que á aurora
     Vencesse em brilho e côr;
     Mas o poeta, o unico thesoiro
     Que tem, ah! são as lagrimas que chora
     E o seu amor.


     Eu vol-o dou. E lá do espaço immenso
     Se amada estrella olhar piedoso envia
     A quem da terra a adora;
     Se o sol aceita á flôr humilde incenso;
     Ha no amor tambem muita poesia…
     Minha senhora!

   Evora.


   * * *


     Beijo na face
     Pede-se e dá-se:
     Dá?
     Que custa um beijo?
     Não tenha pejo:
     Vá!


     Um beijo é culpa
     Que se desculpa:
     Dá?
     A borboleta
     Beija a violeta:
     Vá!


     Um beijo é graça
     Que a mais não passa:
     Dá?
     Teme que a tente?
     É innocente…
     Vá!


     Guardo segredo,
     Não tenha medo…
     Vê?
     Dê-me um beijinho,
     Dê de mansinho,
     Dê!


     Como elle é dôce!
     Como elle trouxe,
     Flôr!
     Paz a meu seio;
     Saciar-me veio,
     Amor!


     Saciar-me? louco…
     Um é tão pouco,
     Flôr!
     Deixa, concede
     Que eu mate a sêde,
     Amor!


     Talvez te leve
     O vento em breve,
     Flôr!
     A vida foge.
     A vida é hoje,
     Amor!


     Guardo segredo;
     Não tenhas medo
     Pois!
     Um mais na face
     E a mais não passe!
     Dois…


     Oh! dois? piedade!
     Coisas tão boas…
     Vês?
     Quantas pessoas
     Tem a Trindade?
     Tres!


     Tres é a conta
     Certinha e justa…
     Vês?
     E o que te custa?
     Não sejas tonta!
     Tres!


     Tres, sim. Não cuides
     Que te desgraças:
     Vês?
     Tres são as Graças,
     Tres as Virtudes,
     Tres.


     As folhas santas
     Que o lirio fecham,
     Vês?
     E que o não deixam
     Manchar, são… quantas?
     Tres!..



   * * *


     Thuribulo suspenso inda fluctuo,
     Em quanto a alma em incenso restituo;
     Mas, quando como fumo que se esvai,
     Minha alma! vás teu rumo… sobe e vai.
     Vai d’estas densas trevas, d’esta cruz,
     Levar-lhe… quanto levas, pobre luz!
     Amor, que em mim não cabe, vai depôr
     Em Deus, e Deus bem sabe se era amor;
     Se d’outra flôr o calix mais libei
     Por esses quantos valles divaguei;
     Se um nome em igneo traço li no céo,
     Nas ondas e no espaço, mais que o seu…
     Deus sabe se eu dos montes vi tambem
     Nos vastos horisontes mais alguem;
     Nos tristes e risonhos dias meus,
     Se alguem vi mais em sonhos, que ella e Deus.
     Porém quem é que apanha o aereo véo
     Da nuvem da montanha, se é do céo?
     Se á terra a nuvem desce, quando vai
     Tocar-se-lhe, desfez-se como um ai.

   Coimbra.


   * * *


     Luz d’intima influencia,
     Oh fugitiva luz!
     Luz cuja eterna ausencia
     É minha eterna cruz.


     Podessem-te, ainda antes
     Do meu extremo adeus,
     Meus olhos fluctuantes
     Vêr lampejar nos céos.


     Se ainda n’esse espaço,
     Tão longe onde tu vás,
     Visse um reflexo baço
     Da pura luz que dás;


     Tornaram-se-me estrellas
     As lagrimas de dôr;
     E lagrimas são ellas…
     Sim, lagrimas d’amor!


     Vê n’esse espaço immenso
     Os astros como estão
     Bem como eu estou, suspenso
     Por intima attracção.


     Porque ha quem os attráia;
     É essa eterna paz
     Que a mim de praia em praia
     A suspirar me traz.


     Converte-me este inferno
     Em azulado céo,
     Ou quebra o laço eterno
     Que a tua luz me deu;


     Ou antes muda em espuma
     De nunca estavel mar
     Esta alma que alma alguma
     Póde exceder em amar.


     Em cinza, em terra, em nada,
     Meu sêr converte, ó luz,
     Mas sempre, sempre amada,
     Deliciosa cruz!

   Portimão.


   RESPOSTA

 //-- A A. DO QUENTAL --// 

     Em fumo se vai tudo, amigo! Olhando
     Para as nuvens do céo, nuvens d’aquellas,
     E parece-me ainda que mais bellas,
     Anda a gente fazendo e desmanchando.


     Dá-me uma saudade em me lembrando
     O bello tempo que passei com ellas,
     Por essa immensa abobada de estrellas,
     Por esse mar de fogo viajando…


     Andasse ainda eu lá, que não me havia
     De vêr por estes charcos atolado,
     Onde nem sol nem lua me alumia.


     Andasse ainda eu lá, desenganado
     Mesmo já como estou de achar um dia
     A patria d’aonde ando desterrado.



   * * *


     Pois se o homem, se anjo e nume,
     Planta e flôr,
     Dá seu canto, luz, perfume,
     Crença e amor;


     Pois se tudo sobre a terra
     Que ame alguem,
     Rosa ou espinho, quanto encerra
     Dá, se o tem;


     Se os carvalhos, nus, medonhos,
     Veste abril;
     Se inda a noite presta aos sonhos
     Graças mil;


     Se onde ha ramo, voz uma ave
     Desprendeu;
     Se onde ha folha, gotta suave
     Cahe do céo;


     Se na praia, quando a onda
     Vem de lá,
     Beijos, antes que se esconda,
     Mil lhe dá;


     Tambem, anjo meu saudoso!
     Te hei de emfim
     Ah! dar quanto de precioso
     Sinto em mim!


     Dou-te o nectar, que me acalma;
     Toma-o tu!
     Sim, meu pranto; mais uma alma
     Que eu possuo!


     Dou-te os sonhos meus ardentes,
     Mas leaes;
     Dou-te as notas mais cadentes
     Dos meus ais!


     Do que ha lindo, tudo quanto
     Me seduz;
     D’esta vida, riso e pranto,
     Noite e luz!


     Dou-te o genio meu, que á sorte
     Vês fluctuar
     Sem mais véla, sem mais norte
     Que esse olhar!


     Dou-te a lyra, que me inspiras,
     Sonho meu!
     Que suspira, se suspira,
     Flôr do céo!


     Dou-te; aceita: tudo é santo,
     Tudo, flôr!
     Dou-te uma alma toda encanto,
     Toda amor!

   V. Hugo.
   Coimbra.


   FLÔR E BORBOLETA


     Tu vôas, borboleta! e que eu não possa
     Voar, amor!
     Diversa como é n’isto sorte nossa!
     Dizia a flôr.


     No valle, ambas irmãs, nascidas fomos;
     És como eu sou;
     E amamo-nos, e flôres ambas somos,
     Mas eu não vôo.


     A ti leva-te o ar; prende-me a terra
     A mim; e eu
     Como hei-de perfumar-te em valle e serra,
     E lá no céo!…


     Mais longe inda tu vás, por outras flôres…
     Girar, talvez,
     Em quanto a minha sombra, meus amores!
     Gira a meus pés!


     E vens-me vêr depois, mas vaes-te embora,
     Sabendo, assim,
     Que em lagrimas me encontra sempre a aurora!
     Pobre de mim!


     Acabem-se estas mágoas, meu thesoiro
     E meu amor!
     Cria raiz ou dá-me as azas de oiro,
     Celeste flôr!

   V. Hugo.
   Coimbra.


   REMOINHO


     Olha como embrulhado
     Que está ainda o céo
     E o chão, como ensopado
     Da agua que choveu…


     Foi um diluvio d’agua;
     E o furacão, que fez,
     Emilia! até dá mágoa
     Tantos estragos: vês?


     Esta infeliz víuva,
     Foi-lhe o telhado ao ar;
     Depois, já nem da chuva
     Tinha onde se abrigar.


     De mais a mais sósinha,
     Sem ter nenhum dos seus
     Aqui ao pé; ceguinha…
     Bemdito seja Deus!


     Além n’aquelle serro
     Parece que raspou
     Com uma pá de ferro
     A terra que encontrou.


     Nem um só pé de trigo
     És lá capaz de vêr.
     Já eu disse commigo:
     Como póde isto ser?


     As arvores arranca
     O vento muito bem;
     Serve-lhe de alavanca
     A rama que ellas tem.


     Vem de lá elle e, topa
     N’uma arvore, o que faz?
     Enrola-se na copa
     E, tronco e tudo, zás!


     Que as folhas não são nada,
     Uma por uma, não;
     Mas já uma pernada…
     Tão poucas ellas são?


     Vê lá se o teu cabello
     É para comparar;
     Mas, possa alguem sustel-o,
     Levanta-te no ar.


     Aqui um loureirinho,
     Que era o que havia só,
     Encontra-o no caminho,
     Ia-o fazendo em pó.


     D’aqui passa, á maneira
     Assim d’um caracol,
     Áquella farrobeira
     Põe-lhe a raiz ao sol.


     Aquelle enorme tronco
     Quiz resistir, depois,
     Ouviu-se um grande ronco,
     Quando o eu vejo em dois.


     Andava a rama toda,
     Emilia! assim, vês tu?
     Á roda, á roda, á roda,
     Eis senão quando, rhuh!


     Foi quando veio o outro
     Urrando como um boi,
     Oh que horroroso encontro!
     Então é que ella foi.


     Vês uma cobra enorme
     Á calma, quando está
     Grande calor, conforme
     As tenho visto já?


     Que não tem ar avonde,
     Falta-lhe já o ar,
     Quer sangue ou agua onde
     Se possa refrescar;


     Anceia-se, sacode
     O corpo todo a vêr
     Se vôa, mas não póde;
     Voar não póde ser;


     E como não supporta
     Já o calor do chão,
     Ao vêr-se quasi morta
     De raiva e afflicção,


     Apenas finca a ponta
     Do rabo em terra, e sái;
     E faça-se de conta
     Que é a voar que vai


     N’aquellas roscas todas
     Que, olhando-se-lhes bem,
     São outras tantas rodas
     Em cima d’onde vem;


     N’aquelle parafuso
     – Aquelle rodopio,
     Á roda como um fuso
     Suspenso pelo fio;


     Com a cabeça chata,
     Aquelle olhar feroz,
     Aquelle olhar que mata
     Sempre de fito em nós?


     Assim d’essa maneira
     É que elle vinha, o tal;
     Salta-lhe á dianteira
     Este de força igual;


     E assim que se avistaram,
     Não sei o que lhes dá;
     Ficam suspensos, param,
     Como com medo já;


     Aquelles sorvedouros,
     Em vez de remoinhar,
     Parecem-se dois touros
     Jogando a terra ao ar;


     Ouvia-se a oliveira
     Zunir no ar, então,
     D’um para o outro inteira,
     Nem bala de canhão;


     E assim se vão chegando
     Cada vez mais, até
     Que eu ólho, eis senão quando
     Vejo… mas vejo o que?


     . . . . . . . . . . . . . . .

   Messines.


   AMORES, AMORES…


     Não sou eu tão tola
     Que cáia em casar;
     Mulher não é rola,
     Que tenha um só par:
     Eu tenho um moreno,
     Tenho um de outra côr,
     Tenho um mais pequeno,
     Tenho outro maior.


     Que mal faz um beijo,
     Se apenas o dou
     Desfaz-se-me o pejo,
     E o gosto ficou?


     Um d’elles por graça
     Deu-me um, e depois,
     Gostei da chalaça,
     Paguei-lhe com dois.


     Abraços, abraços
     Que mal nos farão?
     Se Deus me deu braços,
     Foi essa a razão.
     Um dia que o alto
     Me vinha abraçar,
     Fiquei-lhe d’um salto
     Suspensa no ar.


     Amores, amores.
     Deixál-os dizer;
     Se Deus me deu flôres,
     Foi para as colher.
     Eu tenho um moreno,
     Tenho um de outra côr,
     Tenho um mais pequeno,
     Tenho outro maior.



   FABULA


     Um dia os deuses, cada qual uma arvore,
     Á sua guarda consagraram: Jupiter
     Esse o carvalho, a murta Venus, Hercules
     Lá esse o alemo, e o loureiro Apollo.
     Vendo-as Minerva todas infructiferas:
     Que é isto? exclama. Jupiter acode-lhe:
     Senão, diriam, filha! que as guardavamos
     Só pelo fructo.– Que me importa digam-no;
     É pelo fructo que a oliveira escolho.


     Minerva! brada o pai d’homens e deuses,
     És quem, de todos, sabes mais sem duvida;
     No que não luza… mal fundada gloria.


     Honra sem proveito
     Faz mal ao peito.

   Phedro.
   Coimbra.


   BOAS NOITES


     Estava uma lavadeira
     A lavar n’uma ribeira,
     Quando chega um caçador.


     – Boas tardes, lavadeira!


     – Boas tardes, caçador!


     – Sumiu-se-me a perdigueira
     Alli n’aquella ladeira,
     Não me fazeis o favor
     De me dizer se a bréjeira
     Passou aqui a ribeira?


     – Olhai que d’essa maneira
     Até um dia, senhor,
     Perdereis a caçadeira,
     Que ainda é perda maior.


     – Que me importa, lavadeira!
     Aqui na minha algibeira
     Trago dobrado valor.
     Assim eu fôra senhor
     De levar a vida inteira
     Só a vêr o meu amor
     Lavar roupa na ribeira…


     – Talvez que fosse melhor,
     Vêr… coser a costureira!
     Vir, de ladeira em ladeira,
     Apanhar esta canceira
     E tudo só por amor
     De vêr uma lavadeira
     Lavar roupa na ribeira…
     É escusado, senhor!


     – Boas noites… lavadeira!


     – Boas noites, caçador!..

   Messines.


   GASPAR


     Ora se não sei eu quem foi teu pai!
     Fidalgo: sei perfeitamente bem.
     O que eu não sei, Gaspar! é o que vem
     N’esta vida fazer quem já lá vai.


     Já se vê que é aos paes que a gente sái.
     Tal pai, tal filho; sim, duvída alguem
     Que um pai se é como o teu, homem de bem,
     Tu és homem de bem como teu pai?


     D’isto não ha quem possa duvidar.
     Mas queres um conselho que eu te dou?
     Não mexas n’isso… cala-te, Gaspar!


     Que eu, cá por mim, bem sabes como eu sou,
     Mas é que outro talvez mande tirar
     Certidão de baptismo a teu avô.

   Coimbra.


   * * *


     Deixa que ao romper d’alva o cravo abrindo,
     Á rosa envie o aroma;
     E lá quando alta noite a lua assoma,
     O rouxinol carpindo!


     Que pela face a lagrima resvale
     De quem no exilio geme;
     E quando a propria sombra o homem teme,
     Que a mãi seu filho embale.


     Deixa que ao espaço immenso os olhos lance
     O sol antes que expire;
     Que pelo norte a bussola suspire
     E nelle só descance.


     Amam leões e tigres. Não ha nada,
     Anjo! que a amor se esconda.
     Beija a pomba o seu par; e abraça a onda
     A rocha inanimada.


     Deixa que a nuvem negra tolde a lua
     Se a leva a tempestade;
     Deixa que eu te ame a ti, cara metade,
     D’esta alma toda tua!

   Coimbra.


   CARTA


     Maria! vêr-te á porta a fazer meia,
     Olhando para mim de vez em quando,
     É o que n’esta vida me recreia.


     Acordo até de noite suspirando
     Por que rompa a manhã e tenha o gosto
     De te vêr já tão cedo trabalhando.


     Desde pela manhã até sol-posto
     Que não tens de descanço um só momento;
     Por isso tens tão bella côr de rosto.


     E eu pallido, Maria! O pensamento
     Não é trabalho que nos dê saude,
     Esta imaginação é um tormento.


     Que bello tempo aquelle em quanto pude
     Levar, como tu levas, todo o dia
     N’essa vida chamada ingrata e rude!


     Nunca soube o que foi melancolia,
     Nunca provei as lagrimas salgadas
     Com que a nossa alma as penas allivia;


     Andava sim por essas cumiadas
     Ao sol, á chuva, muita vez, sósinho,
     Vendo os valles, das rochas escarpadas;


     Descendo pelo córrego estreitinho,
     De pontal em pontal, cortando o matto,
     Pelas chapadas, fóra de caminho;


     Mas não era que já o teu retrato
     Me andasse a mim no coração impresso,
     Onde hoje o trago no maior recato,


     E um desengano teu que não mereço
     Me tivesse tirado a fé tão dôce
     D’alcançar algum dia o que appeteço.


     Não foi, não, a paixão que assim me trouxe
     Tão erradio a mim, digo a verdade
     E nem eu te negava se assim fosse.


     É que a gente na sua mocidade
     Não cabe em si, não pára de contente,
     E assim fui eu na flôr da minha idade.


     Tu eras n’esse tempo simplesmente
     A flôr que vai nascendo e mais valia
     Seres tão tenra ainda e innocente.


     Já esse lindo pé que tens, Maria!
     Esse quadril tão largo, e cinta estreita,
     Me não vinha á idéa noite e dia;


     Esses encontros de mulher perfeita,
     Esse peito redondo e arqueado
     Como o de pomba farta e satisfeita.


     Talvez vivesse então mais socegado,
     Ou já que minha sorte é sempre triste
     Ao menos não andasse enfeitiçado.


     Esse bello pescoço, não existe
     Outro assim torneado: o rosto é lindo
     E a tão meiga expressão ninguem resiste.


     A bocca é tão vermelha que, em te rindo,
     Lembra-me uma romã aberta ao meio
     Quando já de madura está cahindo.


     Esses olhos azues… que olhar! Receio
     E desejo estar sempre a contemplal-o;
     Não ha mais dôce e mais custoso enleio:


     Eu não oiço fallar então, nem fallo
     De enlevado que estou e, juntamente,
     Gemendo e abafando os ais que exhalo.


     Oh nuvem da manhã resplandecente,
     Manto real de sêda delicada,
     Cada fio um grilhão que prende a gente.


     Bem podias, Maria! andar tapada
     Só com o teu cabello, á semelhança
     Do sol em nuvem de manhã doirada.


     É tudo encantador. A gente cança,
     Cança de estar olhando e sempre vendo
     Um novo encanto a cada olhar que lança.


     E se essa linda voz nos sái dizendo
     As mimosas palavras que costuma,
     Sente-se a gente logo derretendo;


     Que além d’um rosto tão perfeito, em summa
     Coube-te em sorte um coração perfeito
     E em ti não ha, Maria! falta alguma.


     Oh que ditoso, alegre e satisfeito
     Não viverá o homem que algum dia
     Sentir pular-te o coração no peito,


     E que em deliciosissima agonia,
     Vendo-te já os olhos desmaiando
     Como desmaia o céo á luz do dia,


     Nas azas da ventura atravessando
     Os espaços d’um extasi ineffavel
     Abraçado comtigo fôr voando
     Lá para onde tudo é bello e estavel!

   Messines.


   * * *


     – Dá-me esse jasmim de cera,
     Minha flôr?
     – Mas e depois se lh’o dera,
     Meu senhor?


     – Depois? era uma lembrança.
     – Mas de quê?
     – D’uma tão linda criança,
     Já se vê.


     – Oh tão linda! Mas, parece,
     Sendo assim,
     Que inda quando lhe não désse
     Tal jasmim…


     – Não me esquecia, de certo.
     – Nunca já?
     – Nunca.– Nunca, é muito incerto,
     Mas… vá lá.


     – E a rosa, que bem lhe fica,
     Dá-m’a, flôr?
     – Oh a rosa, a rosa pica,
     Meu senhor!

   Messines.


   MARGARIDA


     Oh que formosos dias, Margarida!
     Esses da tua vida;
     E que nublados
     Meus dias desgraçados!


     Nasci tambem assim risonho e meigo,
     Mas hoje apenas chego
     O calix da ventura
     Á bocca ancioso,
     Torna-se a agua impura
     E o liquido que bebo
     Venenoso,
     Sim, venenoso o liquido que bebo.


     Nem eu concebo
     Como Deus me creasse
     Para tormento eterno;
     Elle que tão affavel, meigo e terno
     Te beija a ti a face
     E te embala no collo, Margarida!
     A mim dar-me esta vida…


     Mas vejo á sombra d’altos edificios
     Miudissimas flôres
     De tão subtís e delicadas côres
     Que se o sol lhes chegasse
     Talvez que nem resquicios
     Lhes ficasse.
     Com uma d’essas azas, estendida,
     Me tapavas tu todo,
     E d’esse modo,
     Com esse escudo,
     Eu ria-me de tudo
     E levava esta vida alegremente.
     Tenho essa fé.


     Vejo tambem a flôr que nasce ao pé
     D’agua corrente,
     Ir tão suavemente
     Levada pela agua!
     Talvez até sem magua
     De deixar sua mãi.
     D’esse modo tambem,
     Amparando-me tu a mim nos braços,
     Eu seguia-te os passos,
     Fosse por onde fosse;
     E d’essa sorte
     Até a morte
     Me seria dôce.

   Messines.


   NO LEITO NUPCIAL


     Dorme, estatua de neve,
     Vergontea de marfim!
     Tocar que impio se atreve
     No que é sagrado assim?


     Dois são: o mais, mysterio
     Vedado á terra. Deus
     Talvez do solio ethereo
     Nem baixe os olhos seus.


     Respeita-os, tapa-os, como
     Japhet e Sem, o pai…
     Pende, sagrado pomo!
     A vista ergue-se e cai.


     Ergue-se e cai, conforme
     A lei, que o manda assim.
     Ergue-se e… Dorme, dorme,
     Vergontea de marfim!


     Mas dize: o espelho a imagem
     Te estampa mal te vê;
     Beija-te o seio a aragem,
     Doira-te o sol; porquê?


     Não segue acaso a sombra
     Teu corpo sempre, flôr!
     E pois, porque te assombra
     Meu insensato amor?


     Ás vezes passas tremula
     Como sagrada luz;
     E os olhos dizem: vemol-a
     Como no alto a cruz.


     Perdoa se isto exprime
     Maldade aos olhos teus;
     Perdoa-me se é crime…
     Amo tambem a Deus.


     E á tarde quando o albergue,
     No solitario val,
     Incenso queima e se ergue
     D’Abel o fumo igual;


     Da pomba solta o vôo,
     Baixa-me um olhar teu
     E dize-me: perdôo;
     Sim, tudo aspira ao céo!

   Coimbra.


   A MINHA MÃI


     Patria! berço d’amor, que a alma embala
     Em quanto a luz vital nos illumina,
     E onde só descançado se reclina
     Quem, longe d’ella, dôr contínua rala…


     Se n’essa essencia, mãi! que a flôr exhala
     Na essencia d’uma flôr d’essa collina,
     Vês lagrimas d’amor que dentro a mina,
     Com saudades de quem do céo lhe falla:


     Se quando, o céo buscando, o fumo ondeia,
     Quando esse valle o sol deixa indeciso,
     Vês como fumo e flôr aspira, anceia


     Um pai, um Deus, um céo, um paraiso,
     Ah! tendo eu tudo, tudo, em minha aldeia,
     Vê tu se labio meu desfolha um riso!

   Coimbra.


   BEATRIZ


     Tu és o cheiro que exhala
     Ao ir-se abrindo uma flôr,
     Tu és o collo que embala
     Suas primicias d’amor.


     Tu és um beijo materno,
     Tu és um riso infantil;
     Sol entre as nuvens do inverno,
     Rosa entre as flôres d’abril.


     Tu és a rosa de maio,
     Tu és a flammula azul,
     Que atam á flecha do raio
     As nuvens negras do sul.


     Tu és a nuvem d’agosto,
     Meu alvo vello de lã!
     Tu és a luz do sol-posto,
     Tu és a luz da manhã.


     Tu és a timida corça
     Que mal se deixa avistar;
     Tu és a trança que a força
     Do vento leva no ar.


     És a perola que salta
     Do niveo calix da flôr;
     És o aljofar que esmalta
     Virgineas rosas d’amor.


     És a roseira que a custo
     Levanta os cachos do chão,
     És a vergontea do arbusto,
     Anjo do meu coração!


     Tu és a agua das fontes,
     Tu és a espuma do mar,
     Tu és o lirio dos montes,
     Tu és a hostia do altar.


     És o pimpolho, és o gommo,
     És um renovo d’amor;
     Tu és o vedado pomo…
     Tu és a minha Leonor…


     Tu és a Laura que eu amo,
     E a minha Taboa da Lei,
     E a pomba que trouxe o ramo,
     E a margarida que achei.


     És o lirio, és a bonina
     Dos valles do meu paiz;
     És a minha Catharina…
     És a minha Beatriz!

   Coimbra.


   INNOCENCIA


     Encolhe as azas, que te abrazas, louca!
     O fogo mata a quem o gera, attende;
     Foge e, se a vida te aborrece, estende
     Um braço aos anjos, que a distancia é pouca.


     Porque uma nuvem, onda transitoria
     Do mar immenso, vem pousar na serra,
     Não fica a nuvem pertencendo á terra:
     Tu és o anjo que desceu da gloria.


     Estranhas forças para ti me attrahem;
     E ás vezes cedo, tua cinta enleio;
     Teus olhos beijo; mas, contemplo o seio,
     Tua alma dorme, e os meus braços cahem…


     Desfallecidos, flôr celestial!
     Como ante um berço cahe a foice erguida,
     Se ha n’elle mais do que uma simples vida,
     Se ha innocencia que mil vidas val.


     Oh! não: teus labios o meu fel não provem:
     Outros os lirios d’essa face esmaguem;
     D’outros mãos impias teu sorriso apaguem,
     Em quanto os labios tuas graças louvem.


     Já no meu berço d’innocencia pude
     Pesar as joias, que hoje em vão te invejo:
     Provei os favos de illibado pejo,
     Sei o que perde quem o vicio illude.


     Alcantil ingreme, onde o raio é certo,
     Contém mais seiva, que inda o musgo cria:
     Quanto de fertil em nossa alma havia
     Só deixa o ermo da saudade aberto.


     Cahir no abysmo de intimos pezares
     D’essas alturas onde mal te vejo,
     O ponto estava derreter n’um beijo
     O fio de oiro que te manda aos ares.


     N’esses dois cofres, n’esse collo aonde
     Tantas riquezas enterrei ciumento
     (E que alta noite vela o pensamento
     Pelo crystal que o coração te esconde)


     Em oiro em barra, fina prata e quanto
     Coalha o vasto e opulento Oriente,
     Fôra em ruinas encontrar sómente
     Carvão, se um dia te quebrasse o encanto.


     Casta innocencia, de Deus filha e bella
     Entre as mais bellas! virginal aroma!
     Rosa ineffavel, que, se á luz assoma,
     Haste e raiz apodreceu com ella!


     Sol, que uma vez em nossa vida passas!
     Flôr, que uma e neutra, como Deus, não gera;
     Que se abre morre, mas sem prole, inteira
     Com todo o côro das virgineas graças:


     Ao vêr-te, embora meu olhar te envia
     O impio incenso de Nadab, ajoelho…
     Rosa da face e, não só rosa, espelho
     Da face occulta de quem espalha o dia!


     Se por teus membros orvalhadas flôres
     Prodigas mãos da formosura entornam,
     Flôres mais bellas o teu seio adornam…
     Vós, lirios d’alma, virginaes amores!


     O céo me encanta, como encanta o inferno.
     Mysterio… espaço… mente exploradora!
     Morre nas mãos o que a nossa alma adora
     – Vago, impalpavel, infinito, eterno!

   Evora.


   * * *


     A Escriptura Sagrada
     Lá diz que uma mulher má
     Não ha fera, não ha nada
     Peor no mundo: e não ha.


     Uma lá da minha aldeia,
     Que era muito impertinente,
     Muito má (e muito feia)
     Morre um dia de repente.
     Morreu; desgraçadamente
     Mais tarde do que devia;
     Mas em summa toda a gente
     Teve a maior alegria.


     Passados annos (é boa!)
     Foi-lhe preciso ao coveiro
     Abrir a cova, e achou-a
     Ainda de corpo inteiro,
     Ainda rosas na face,
     Ainda signaes de vida…
     Milagre! coisa sabida;
     Pois mais fresca que uma alface
     Ha tanto tempo enterrada,
     Devendo estar reduzida
     A pó, terra, cinza e nada…


     Vem dar parte; e corre a vêl-a
     O povo atraz do prior;
     E passam logo a trazel-a
     Em cima do seu andor
     E a pol-a n’uma capella
     De grande veneração;
     (Elles ás costas com ella,
     E elle a cantar canto-chão;)
     Mas seja lá o que fôr,
     O que é certo e mais que certo
     É que santa como aquella
     E nem de mais devoção,
     Não ha por alli tão perto.


     E dizem que não ha santos
     Como nos tempos passados!
     E cá opinião minha
     Que muitos (quantos e quantos!)
     Que ahi morrem desprezados,
     Se não são canonisados
     É que está cheia a Folhinha.

   Messines.


   A UM NUNO

 //-- Provando a existencia de Deus a pobres camponezes --// 

     Ora a provar que ha Deus, Nuno! isso é teima:
     Pois ha alguma ovelha no rebanho
     Que não saiba que só a mão suprema
     Creava um animal d’esse tamanho!
     A ***


     Pois se como sempre fomos
     Somos
     Pétalas da mesma flôr,
     E o que eu sinto, ou eu me illudo,
     Tudo
     Tambem sentes, gosto e dôr;


     Que te arraza os olhos d’agua?
     Magua
     Em que eu não deva tocar?
     Oh! mas se ha quem a suavise,
     Dize,
     Vou-lhe um suspiro levar.


     Não se alcança, não se avista,
     Dista
     D’aqui muito o allivio, ou não?
     Dos teus olhos muito; e pouco,
     Louco!
     Pouco do teu coração.


     Sei o que vai em teu seio;
     Sei-o
     Porque em materia d’amor,
     Debalde os labios se calam!
     Fallam
     Ainda os olhos melhor!

   Batalha.


   LUZ DA FÉ


     Tu, sol! já não me alegras
     Como alegravas, não:
     Vós, sim, ó nuvens negras,
     Relampago e trovão!


     Quando o trovão me aterra,
     Recordo-me de Deus;
     Abalo cá da terra
     E vou por esses céos:


     E lá n’essas alturas,
     Por onde só a fé,
     Em regiões tão puras,
     Nos deixa tomar pé;


     Voar, pairar nos ares
     Como uma aguia cá,
     De lá só vejo os mares,
     E é porque a luz lhes dá.


     O mais como se apanha
     E empolga com a mão,
     Seja a maior montanha,
     Seja a maior nação;


     O mais fica no fundo
     D’esse infinito mar;
     O mais pertence ao mundo,
     É escusado olhar.


     Deus deixa ás creaturas
     Cá baixo a sua cruz,
     E fecha as almas puras
     N’um circulo de luz.


     As chagas, as miserias
     Cá d’este lamaçal,
     Nas regiões ethereas,
     Lá não se avista tal.


     É só a luz, que foge,
     Mais uma irmã que tem
     – A alma, que até hoje
     Não a prendeu ninguem;


     São essas duas luzes
     (Qual d’ellas tão subtil
     Que ás forcas e ás cruzes
     Do despota mais vil,


     Se escapam de tal modo
     Que é de o fazer raivar)
     Cá d’este mundo todo
     O que se vê brilhar!


     Porque uma e outra aspira
     Continuamente ao céo,
     A alma que suspira,
     E a luz que Deus nos deu.


     Porque uma e outra é pura,
     Perpetua e immortal;
     E a sua formosura,
     Não ha nenhuma igual.


     Quem é, ó luz formosa,
     Ó minha bella irmã!
     Quem é que faz a rosa
     Abrir pela manhã?…


     Eu amo-te e (as trevas
     Não teem esplendor!)
     Tu só é que me levas
     O tempo e o amor.


     Mas eu estimo o raio
     E gósto do trovão,
     Por vêr que quando cáio
     É que me elevo então.


     Por vêr que em tendo medo
     Mais se me aviva a fé;
     E a fé, não ha rochedo
     Firme como ella é.


     Por cima da desgraça
     Ou seja do que fôr,
     Ella, não olha, passa
     De fito no Senhor!


     A essa luz divina,
     Ó luz! é que tu és
     Tão pura e crystallina
     Como o Senhor te fez.


     Por isso a noite escura,
     Ah! se eu a preferi
     Á tua luz tão pura,
     É por amor de ti!

   Messines.


   RESPOSTA

 //-- A A. DO QUENTAL --// 

     Tal é a confiança que te inspira
     Estes reis, estes povos, esta gente,
     Que é para o céo que appella e se retira
     Tua alma já de triste e descontente.


     Mas Deus então seria ou impotente
     Ou seria um Deus barbaro: mentira!
     Não póde suspirar eternamente
     Quem ha já tantos seculos suspira.


     Vai ganhando terreno a luz brilhante,
     Luz toda liberdade e toda amor
     Que ha-de salvar o mundo agonisante.


     A idéa, esse Verbo creador
     Ha-de fazer que um dia e não distante
     Só o nome de imperio inspire horror.

   Messines.


   * * *


     Meu casto lirio,
     Terno delirio,
     Gloria e martyrio
     Do meu amor!
     Amo-te como
     A haste o gomo,
     O labio o pomo
     E o olho a flôr.


     Se ao meu ouvido
     Sôa um rugido
     Do teu vestido,
     Que ouço roçar;
     Que som me vibra
     Não sei que fibra
     Que me equilibra
     A mim no ar!


     E que harpa santa
     É que me encanta
     E enche de tanta
     Consolação,
     Quando uma falla
     Terna se exhala
     D’onde se embala
     Teu coração!


     Quando te vejo
     D’um simples beijo
     Córar de pejo,
     Mudar de côr,
     Que susto é esse
     Que me parece
     Te empallidece,
     Rosa d’amor!


     Quando no leito,
     Teu niveo peito
     Sonho que estreito
     E aperto ao meu;
     Vendo tão perto
     O céo aberto,
     Porque desperto…
     Anjo do céo!


     Não fujas, rosa!
     Não fujas, goza
     Manhã mimosa,
     Manhã d’amor;
     De folha em folha
     A flôr se esfolha
     Bem cedo, e olha
     Que és como a flôr!

   Coimbra.


   VENTURA


     O sol na marcha luminosa vôa
     Lançando á terra magestoso olhar;
     Passa cantando quem o ar povôa
     E a praia abraça venturoso o mar.


     No bosque o vento dôce canto entôa,
     Ouvem-se em côro as multidões cantar;
     Que a um só triste o coração lhe dôa,
     Que eu seja o unico a soffrer, chorar…


     Por ti, saudade… de quem vai tão perto
     E a quem dos olhos e das mãos perdi
     N’este tão ermo lugubre deserto!


     Por ti, ventura… que uma vez senti;
     Por ti, que ás vezes a meu peito aperto
     E… o peito aperto sem te vêr a ti!

   Evora.


   * * *


     Arida palma
     Tem seu licôr,
     Tem como a alma
     Tem seu amor;
     Tem como a hera
     Tem seu abril,
     Tem como a fera
     Tem seu covil.


     Tem toda a planta
     Que o sol queimou
     Lagrima santa
     Que a orvalhou,
     E o passarinho
     Que hontem nasceu
     Lá tem seu ninho
     Que a mãi lhe deu.


     Só eu na magua
     Do meu penar
     Sou como a agua
     Que anda no mar,
     Sou como a onda
     Que á busca vem
     D’onde se esconda,
     E onde, não tem!


     Folha revolta
     Que anda no chão,
     Lagrima solta
     Do coração;
     Corpo sem vida,
     Haste sem flôr,
     Folha cahida
     Do meu amor.

   Coimbra.


   A UNS OLHOS AZUES


     Cahe a folha da rosa pudibunda,
     Cahe a rosa da face virginal,
     Cahe das nuvens a aguia moribunda,
     Cahe o sol na montanha occidental.


     Cahe a onda na praia, cahe do somno
     O poeta na luz; e cahe das mãos
     Dos despostas o sceptro, elles do throno,
     Como a seus pés cahiram seus irmãos!


     Cahe dos labios o riso; cahe dos olhos
     A lagrima tambem, que d’alma sahe;
     Cahe a rocha no mar, cahe nos abrolhos
     A flôr de liz; de louro a folha cahe.


     Cahe do céo a centelha incendiaria,
     A nuvem cahe se um sopro Deus lhe dá,
     Cahe ante o dia a noite solitaria
     Como o falso Dagon ante Jehovah.


     Cahe tudo, flôr! cahe tudo; eu só não cáio:
     Mais do que um rei, que o sol, igual a Deus,
     Cahir, mulher! só posso á luz d’um raio
     Se elle cahir do céo dos olhos teus!

   Luso.


   HERESTA


     Que magua ou que receio
     Dos olhos te desata
     Aljofares de prata
     No jaspe do teu seio?


     Bem intima ser deve
     A pena que te opprime,
     Flôr tenra como o vime,
     Flôr pura como a neve!


     – Compunge-te isso, dóe-te
     Vêr esmaltando o calix
     Da erma flôr dos valles
     O balsamo da noite?


     Se aos olhos nos affluem
     As lagrimas, parece
     Que a dôr nos adormece,
     E as maguas diminuem.


     – Heresta! pois inclina
     Na minha a tua face
     E deixa me repasse
     Teu balsamo, bonina!


     Abraça-me, divide
     Commigo esse consolo,
     Enlaça-te ao meu collo
     Como ao olmeiro a vide!


     Ás vezes tambem quando
     Os olhos se me estendem
     Ás luzes, que se accendem
     No templo venerando;


     Tão intima saudade,
     Tão intimo desejo,
     D’um mundo, que não vejo,
     Me inspira a immensidade…


     Que o pranto se agglomera
     Na palpebra, onde morre;
     Sim, gela-se, não corre,
     Tal é a dôr que o gera!


     – É Deus que a si te aspira,
     É Deus que ao céo te chama;
     Que em tudo amor derrama,
     A tudo amor inspira!


     Canta-o, o justo, o santo!
     E a flôr que o campo adorne
     Thuribulo se torne
     Mal te ouça o dôce canto.


     – Inspira-o pois, inspira,
     Virgem de intacto pejo!
     Seja um teu riso o harpejo
     E um teu cabello a lyra!


     O sol já da montanha
     Te disse adeus! adeus!
     E a cupula dos céos
     Ficou pallida e estranha.


     E aquella, que a bondade
     De Deus em si reflecte,
     Em quanto ao sol compete
     Mostrar-lhe a magestade,


     Á luz extrema d’hoje
     Ergueu livida a face
     Com medo que avistasse
     Quem busca, e de quem foge.


     Fluxo e refluxo eterno
     D’alma contradictoria,
     Que após continua gloria,
     Anda em continuo inferno.


     Poeta! é copia tua,
     Supplicio igual te inquieta.
     Mas que alma de poeta
     Teu seio arqueia, oh lua?


     Amor, amor como este,
     Visão timida e casta
     Em giro eterno arrasta
     A lampada celeste.


     Como esse que a deshoras
     A ti te ergue a cabeça
     E aos ermos te arremessa
     Em busca do que adoras.


     Mas, ah! pallido globo!
     É pio d’ave nocturna,
     Echo em alguma furna
     Do uivo d’algum lobo?


     Ouço uma voz… escuta:
     É ella a voz que se ouve?
     Ou monge que inda louve
     A Deus, n’alguma gruta!


     Quem lá em baixo á escarpa
     D’um ingreme penedo
     No tremulo arvoredo
     Entorna os ais d’uma harpa?


     É ella a minha Heresta,
     A minha branca ermida
     Do ermo d’esta vida,
     Mais erma que a floresta?


     Tu, lua, que no val
     D’Aialon paraste,
     Já viste em sua haste
     Suspenso lirio igual?


     Não é, não é mais bella
     A rosa entre os abrolhos,
     Nem ha como os seus olhos
     No céo nenhuma estrella!


     É á luz d’uma alvorada,
     Apenas desabrocha,
     Nos angulos da rocha
     Vêl-a despedaçada!


     Vós, lobos! ide em bando,
     Trepai pelo rochedo,
     Uivai, mettei-lhe medo,
     Levai-a recuando!


     Que faz quem se aproxima
     D’um precipicio, diz-m’o?
     Que buscas tu no abysmo
     Se o céo é lá em cima?


     Não tarda muito, creio,
     Que acabe esta ancia nossa,
     E Deus unir-nos possa
     No seu eterno seio.


     É lá que a alma falla,
     Lá que o amor se mede,
     Que em brilho o sol excede,
     E em gloria a Deus iguala!


     Na nuvem do futuro
     Teus vagos olhos prega!
     Depois de noite negra
     Vem sempre um céo mais puro.


     E agora, se o desejo
     Te satisfiz, em premio
     D’um canto d’alma gemeo,
     Um gemeo e dôce beijo!

   Coimbra.


   FRAGMENTO


     ..........................................


     Deixal-o: os olhos fecho á luz e quero…
     Quero-te, oh sonho, se és doirado e lindo:
     Mais que a teus fachos, pedagogo austero!
     Que me condemnas em chorando e rindo.
     Sempre olhos fundos, sempre esse ar severo…
     Razão! não te amo; mas a ti, bemvindo,
     Tu que os conselhos nunca, amor! lhe tomas;
     Dás luz á lua, dás á rosa aromas.


     Oh! ha tres vistas com que as coisas vemos;
     Ha tres razões que as coisas determinam;
     Uma a dos olhos; outra a que escondemos
     N’isso ante que os alemos se inclinam;
     Outra a que dentro no coração temos,
     Que os limites do espaço só terminam:
     Coube a primeira em sorte á borboleta;
     A outra ao homem; a terceira ao poeta.


     Mas será só poeta quem faz versos?
     Não é a flôr poeta que o sol canta?
     Não cabe aos ais tão intimos, dispersos
     Do cantor triste nome e gloria tanta?
     Esses aereos tão mimosos berços,
     Que, excepto o homem, o furor quebranta
     A quanto é fero e sanguinario, acaso
     Cada um d’elles não é um parnaso?


     Mais poesia em pobre margarida,
     Que aos pés se pisa, enthesoirada vejo,
     Que em muita madreperola polida
     Que as cinzas guarda de finado harpejo.
     Dize-me, pomba! que no ar sustida
     Vens como a nuvem Coroar d’um beijo
     Quem teus desvelos maternaes comparte:
     Camões excede-te em engenho e arte?


     Vaidade humana! Do que é simples, claro,
     Fazem mysterio; dão-lhe um nome e basta:
     Como esse eunucho sacerdocio avaro
     Que da verdade as multidões afasta…
     Mas a verdade não é pedra d’ara
     Nem arca-santa que só certa casta
     Tem privilegio de levar ao hombro
     Ou vêr de perto, sem morrer d’assombro.


     Padre, ministro do Crucificado
     É bom ferreiro afeiçoando o ferro
     Com que ha-de prestes ir rompendo o arado
     Os campos d’este secular desterro.
     Melhor explicam um lugar sagrado
     Bigorna e malho, que explica o berro
     De bonzo inutil; que asperos abrolhos
     Não viram nunca seus inchados olhos.


     Apostolo é o pai que se afadiga
     Só para que descance o filho amado;
     Apostolo é a rocha em que se abriga
     Ave agoureira e pobre desgraçado;
     Apostolo é a lagrima que amiga
     Cahe pela face em peito amargurado;
     E esse monstro do céo que solitario
     Correu o mundo á busca do Calvario.


     E assim vós outros, falsos sacerdotes!
     Que a mesma crença sustentar devêreis,
     Poetas vos chamaes se em ôcos motes
     Sabeis vasar combinações estereis?
     Monges! tendes o habito; se os dotes,
     Os doze dons do Espirito tivereis,
     Crêreis que é mais poeta o dôce favo
     Que a abelha fabríca em mato bravo.


     Fechei a minha bocca largo espaço
     Para vêr e pasmar; eu não podia
     Tirar os olhos do tributo escaço
     Que paga o albergue quando acaba o dia.
     Pelo filhinho em maternal regaço
     Como ave em ninho a balançar, medía,
     Não essa Iliada a compasso austero,
     Mas a de Christo, a do celeste Homero.


     Lia esse livro que anda encadernado
     Em pelle humana e embrulhado em pranto,
     Mas para bençãos, para amor dictado
     E quanto ha puro, quanto ha bello e santo:
     Livro que o impio soletrou tocado,
     Se o impio os olhos pôde erguer a tanto;
     Mas que a moirama só conserva vivo
     Porque não morre o immortal captivo.


     Não morre: eterno como a fonte d’onde
     Dimana a luz, a vida, amor e tudo,
     Que amostra a terra, amostra o mar, e esconde
     O céo, o espaço, o infinito mudo…
     O mundo mudo! para quem? responde,
     Valente martyr! que o pesado escudo,
     Com que a verdade os olhos encobria,
     Morreste mas quebraste á luz do dia.


     «Existe um pai commum, que a todos ama
     E d’elles só juiz a si reserva
     Punil-os de seu mal; o sol derrama
     Por cedro erguido e enterrada herva;
     Desarma o laço que a perfidia trama,
     Ou n’elle a prende e faz cahir; enerva
     Braço que se ergue contra irmão; fecunda
     Semente que não cahe de mão immunda.


     «Diante d’elle as obras apparecem
     Taes como as gera o intimo do peito:
     Basta o amor do bem, se as mãos fallecem;
     Sem esse amor é nada o grande feito.
     Embora os homens de soltar se esquecem
     Quem chora escravo; porque, em seu conceito
     Deixe chorar quem purpuras arrasta,
     Cante que é livre na verdade, e basta.»


     Ella o resto fará; porque a seu braço
     Reis não resistem, não resistem povos:
     Um raio a nuvem parte e deixa o espaço
     Coalhado d’astros que parecem novos:
     Põe ao sol, que o fecunde, o simples traço,
     Como a grande avestruz os grandes ovos;
     E quem depois no mundo a luz lhe apaga?
     Ninguem apaga a luz que o mundo alaga.


     Sacerdocio embusteiro as mãos lhe prega
     Em tronco immovel que seus labios gele;
     Á justiça profana o justo entrega
     (Sua irmã gemea que a verdade expelle:)
     Já das almas senhor o rosto alegra,
     Já morto o canta, sepultado e elle
     Só o consome o incendio que já lavra
     De bocca em bocca, o incendio da palavra.


     Nenhum de nós o viu andar prégando,
     Nenhum seu olhar vago lhe notámos,
     Nunca o vimos no ermo a Deus orando,
     Nunca a mão estendida lhe apertámos;
     E por todos seu nome vai passando,
     Todos, os seus preceitos, decorámos…
     E que vá vêr-lhe a campa ao Oriente
     Quem os olhos da carne tem sómente.


     Que é um tumulo acaso, esse tributo
     Pago pela materia á vil materia?
     Quem vai na campa alliviar o luto
     Se a vista alonga á amplidão aerea?
     Quem a copia de Deus rebaixa a bruto,
     E a mais que bruto a immortal, etherea,
     Celeste pomba, que em seu vôo a vida
     Em factos deixa ás almas esculpida?


     Não me embala inda Homero nos seus braços
     E me pinta nas mãos a natureza?
     Não lhe ouço eu inda a voz…como ouço a espaços
     A voz da grande Fama portugueza…
     Quando me apraz olhar para os pedaços
     D’este grande gigante que a fraqueza
     Expoz aos coices…leão moribundo…
     O rei antigamente d’este mundo?


     Eu não sou dos que a patria sua adoram
     Como adora o seu deus o fiel crente.
     Vejo que todos n’uma patria moram
     E sobre todos vejo um céo sómente:
     Mas ame cada qual; que se outros choram
     Nas mãos dos tigres que só comem gente,
     Tambem meus olhos choram seu tormento
     D’onde quer que seus ais me traga o vento.


     Deixai ir em seu transito divino
     Desde a Cruz do Calvario na Judêa,
     Té á ponta da espada d’aço fino
     Desembainhada em Italia, o tempo, a idêa.
     Deixai andar a vêr o peregrino
     Onde a ventura abunda, onde escassêa
     Para vos dar, no oiro (Fé e Esperança!)
     Rei e pastor nas conchas da balança.


     Ha-de vir esse dia; e se a figueira
     Em abrolhando perto vem o estio,
     Não longe está: a cobra carniceira
     De mil roscas e lugubre assobio
     Que terra come, e come a terra inteira,
     Se á terra inteira se enrolar, despiu
     A pelle enorme com bastantes dôres
     Esfolada por tres imperadores…


     Eu não sei qual mais chore; se essa sêde
     De sangue insaciavel dos tyrannos,
     Ou se é a escuridão vossa que eu hei-de
     Antes chorar, oh miseros humanos!
     Que solimão vos deram, loucos! vêde:
     Não vale a gloria que vos faz ufanos
     Um só pingo de sangue, um só, vertido,
     Um gemido de mãi, um só gemido!


     É do sangue e das mães que eu fallo; e certo,
     Que ha na vida mais santo? O sangue é vida;
     E as mães fonte da vida: eu nunca esperto
     Esta lampada d’alma, suspendida
     Na abobada eterna e que tão perto
     Parece ter a origem............
     ................senão quando
     Vejo essa cara imagem suspirando.


     Eu amo as mães, seu nome é terno e dôce;
     Sim, amo as mães: nossa alma d’ellas nasce:
     Quem n’um collo de mãi cahiu, achou-se
     D’um pulo ao pé de Deus: a alma pasce
     Lirios celestes vendo-as; e seccou-se,
     ........................................
     Do casto e candido a sagrada fonte,
     Se ella no tumulo encostou a fronte.


     Essa é a virgem-mãi, voz suavissima
     D’esse cantico eterno– o Evangelho;
     A Virgem… Mãi… de Deus! virgem purissima,
     Cheia de graça e de justiça espelho.
     Oh poesia, poesia altissima
     Como o fecho do empyreo! eu me ajoelho
     E beijo a tua base, harpa celeste!
     O coração, a corda que nos déste.


     Em que labios se bebem mais delicias,
     Em que face de virgem se desatam
     Rosas mais puras d’intimas primicias,
     Que nas que por dar vida a nós se matam?
     Sempre a bem nosso, a nosso amor propicias
     Na menina dos olhos nos retratam;
     E nunca premio vil em paga pedem
     De quanto, tanto d’alma, nos concedem.


     Na montanha da Fé, mulher formosa
     Se ante mim a meus pés desenrolasse,
     Como o demonio, a vastidão pasmosa
     Que elle dava a Jesus se o adorasse;
     E me pedisse em premio uma só coisa
     – Ás mãos de minha mãi furtar a face;
     Eu lançava-lhe o cuspo, essa tesoira
     Que em mil bocados faz a vacca-loira.


     Vêde-a ao berço, sofrega de vida,
     Que a sua é pouca para a dar ao filho;
     Ella em cama de espinhos, mal vestida;
     Elle enfaxado, em berço de tomilho;
     Ella em contínua, azafamada lida,
     Elle vendo se apanha á luz o brilho…
     Já descobrindo em tão tenrinha idade
     Que toda a sua sêde é de verdade.


     E esses lobos que em duas patas andam
     Para ter sempre em guarda as outras duas;
     Que a monte sahem só, e só debandam
     Como os ladrões, á noite, pelas ruas;
     A empecer que os animos se expandam,
     Que a luz se espalhe, e que as imagens tuas,
     Bom Deus! de imagens passem: e que admira…
     Sem o sopro que ao barro a vida inspira!


     Já se iam vendo os campos relvejando
     Cá da banda do sol n’este horisonte
     Por onde já n’um mar se andou nadando
     E onde apenas se encontra secca fonte;
     E eil-os já os hypocritas minando,
     Cortando ao povo hebreu na marcha a ponte
     Só para que o manná que o céo lhe chove
     No deserto dos reis jámais nem prove.


     Retalhou-lhes o labio omnipotente
     O habito comprido, a manga larga,
     Olhar submisso mas lugar na frente;
     E nem despido o monstro a presa larga.
     «São sepulchros caiados, vêde, oh gente!
     Por dentro podridão:» em voz amarga,
     Em voz de grande horror, de grande abalo,
     Christo clamou d’aquelles de quem fallo.


     «Dizimam-te o coentro e a arruda,
     Mas sua consciencia é generosa.
     Chamam-se mestres… de sciencia muda,
     A sciencia da cobra venenosa:
     Olhai, não espia a fera, espreita, estuda
     Toda a volta do dia, mais manhosa,
     Que essa raça de viboras, que espalha
     Veneno em todo o mundo, que coalha.»


     Irmãs da Caridade! A Caridade
     Tem só duas irmãs– a Fé e a Esperança:
     Não traja as côres só d’uma irmandade,
     Traja as côres do Arco-da-alliança:
     Leva sósinha o pão da piedade,
     Tira da roda essa infeliz criança…
     Roda da vida, que anda de tal sorte
     Que, em se lhe dando, é já contar com a morte.


     Bemdita sejas tu, victima triste
     De um peito amante e d’um amante ingrato!
     Que nunca á mesma loba lançar viste
     Inda mamando o cachorrinho ao mato;
     Bemdita sejas tu, que o que pariste,
     Teu fructo, imagem tua e teu retrato
     Conservas como espelho onde te vejas;
     Bemdita sejas tu, bemdita sejas.


     Pára suspensa a pomba no seu vôo
     Ao vêr-te contemplando-o ajoelhada;
     E dizendo-te, a pomba: eu te abençôo
     Da parte do pai nosso, irmã amada!
     Abriste o seio ao dia e fecundou-o
     Aquella luz que o mundo fez de nada,
     E deu ao campo a flôr, á flôr semente
     Com que a mãi os filhinhos seus sustente.


     Bemdita sejas tu. Quando se esconde
     Debaixo da tua aza o que criaste,
     Abraça e beija os anjos Deus lá onde
     A jarra está da flôr de que és a haste;
     E um dia que não tenhas pão avonde
     Ou do céo te não chova agua que baste,
     Lança-lhe á luz do dia a mão direita,
     Mostra-lh’o; Deus os filhos não engeita.


     Pai não tinha o filhinho de Maria
     E ella o bercinho lhe arma de mil flôres,
     Deixando entrar em casa a luz do dia
     Que em perfume as derreta em seus amores;
     E inda abrindo os olhinhos mal lhe via,
     Já os pinceis preparam os pintores;
     Que o pai d’esse menino… Oh maravilha!
     Os que não teem pai Deus os perfilha.


     Deixa passar de largo a desposada…
     De cujo filho o pai quem é, Deus sabe!
     Deixa-a roçar-te os fatos enfadada
     Se comtigo na praça a par não cabe:
     Talvez um dia a casa levantada
     Sobre a areia solta ao chão desabe
     E em ruinas se encontre este letreiro:
     «Não era o pai dos teus mais verdadeiro.»


     Quem é que nasce aos pares como a rola,
     Ou como a pomba morre em viuvando,
     Que pela vêr sósinha em lodo atola
     Fresca vide que está do chão lançando?
     Acaso é só dourada altiva estola
     Que liga os corpos em as mãos ligando,
     Confunde os corações, e faz em summa
     Que a Deus se elevem duas almas n’uma?


     Amor é a palavra, o brado eterno
     Solto por Deus ao vêr já feito o mundo,
     Que fez tremer os carceres do inferno
     E o sol ficou da côr d’um moribundo:
     A primavera, estio, outono, inverno,
     Terra, céo, alma pura, bicho immundo,
     Tudo ahi cabe á larga de tal modo
     Que n’essa concha Deus se fecha todo.


     Amor enrola a nuvem na montanha
     E espalma a onda em praia que não sente,
     Ata ao raio de sol o fio d’aranha
     E humilha ao conductor o raio ardente.
     Quanto na rede immensa a vista apanha.
     Tudo que jaz e cresce e vive e sente,
     De Deus brotou n’um jorro de bondade
     E póde amar-se em espirito e verdade.


     Amo á aurora a luz doirada e clara,
     E ao crepusculo as nuvens da tristeza,
     A solida montanha, a nuvem rara
     Por invisivel fio aos astros presa;
     Amo a ancia feroz, a sêde avara
     Com que a loba parida engole a presa,
     E os crystallinos ais d’ave innocente
     Que comprimenta o sol ingenuamente!


     Amo o sopro que parte, esmaga, estala
     Esses corvos que aos bandos vem das ondas
     N’essas noites que o impio até se cala
     Receando, trovão! que lhe respondas…
     E amo o bafo subtil que a flôr embala
     Pedindo-te, botão, que dentro o escondas,
     E as primicias lhe dês que leve áquelle
     Que te fez a ti flôr e vento a elle.


     Tu só, que horror! a ti oh não te amo!
     Cheiras-me a sangue tu; teus olhos baços
     Olham, não vêem; tu tens bocca, chamo,
     Não me respondes; tens como eu dois braços,
     E não me abraças; brado afflicto, clamo,
     Tens duas pernas, e não dás dois passos:
     Ris, mas teu riso é d’enrilhados dentes;
     Mettes-me medo; tu, cadaver! mentes.


     Ninguem (prohibe-o Deus) o braço córte
     Que lhe roubou o espirito divino;
     Deus a Cain apaga sul e norte
     E condemna a viver o assassino:
     Mas tu, mentira! symbolo da morte…
     Hypocrisia! teu sorrir felino
     Te deixe arreganhada a bocca aberta,
     Gele-te a morte a mão que a minha aperta.


     ..........................................

   Evora.


   * * *


     Se ao enlaçal-a no peito
     Me cahe desfeita uma flôr,
     Lembras-me, sonho desfeito!
     Sonho d’amor!


     Se a borboleta do calix
     D’um lirio aos ares se ergueu,
     Lembras-me, estrella dos valles!
     Lirio do céo!


     Se inda um affecto em mim vive
     Entre os que mortos possuo,
     Lembras-me, sonho que eu tive!
     Lembras-me tu!

   Coimbra.


   * * *


     Nunca me ha-de esquecer (ingrata! escuta)
     Não tendo eu mais talvez que os meus dez annos
     Esses olhos crueis, esses tyrannos
     Commigo em porfiada aberta lucta.


     Se eu fôra voraz lobo ou fera bruta
     D’entranhas más, instinctos deshumanos,
     Talvez o fructo então de teus enganos
     O não colhesses tu de face enxuta.


     Mas eu perdôo-te o mal que me has causado;
     A culpa não é tua e só devia
     Vingar-me em quem tão bella te ha formado.


     E hei-de vingar-me, crê; mas isso um dia
     Depois d’um beijo teu me pôr em estado
     De disputar a Jove a primazia.

   Evora.


   DINHEIRO


     O dinheiro é tão bonito,
     Tão bonito, o maganão!
     Tem tanta graça o maldito,
     Tem tanto chiste o ladrão!
     O fallar, falla d’um modo…
     Todo elle, aquelle todo…
     E ellas acham-no tão guapo…
     Velhinha ou moça que veja,
     Por mais esquiva que seja,
     Tlim!
     Papo.


     E a cegueira da justiça
     Como elle a tira n’um ai!
     E sem pegar n’uma pinça;
     É só dizer-lhe: ahi vai…
     Operação melindrosa
     Que não é lá qualquer coisa;
     Catarata! tome conta:
     Pois não faz mais do que isto,
     Diz-me um juiz que o tem visto:
     Tlim!
     Prompta.


     N’essas especies de exames
     Que a gente faz em rapaz,
     São milagres aos enxames
     O que aquelle diabo faz.
     Sem saber nem patavina
     De grammatica latina,
     Quer-se a gente d’alli fóra?
     Vai elle com taes fallinhas,
     Taes gaifonas, taes coisinhas…
     Tlim!
     Ora…


     Aquella physionomia
     E labia que o diabo tem!


     Mas n’uma secretaria
     Ahi é que é vêl-o bem!
     Quando elle, de grande gala,
     Entra o ministro na sala,
     Aproveita a occasião:
     Conhece este amigo antigo?
     – Oh meu tão antigo amigo!
     (Tlim!)
     Pois não!

   Coimbra.


   DUVIDA


     Amas-me a mim! Perdôa;
     É impossivel! Não,
     Não ha quem se condôa
     Da minha solidão.


     Como podia eu, triste,
     Ah! inspirar-te amor,
     Um dia que me viste,
     Se é que me viste… flôr!


     Tu, bella, fresca e linda
     Como a aurora, ou mais
     Do que a aurora ainda,
     Mal ouves os meus ais!


     Mal ouves porque as aves
     Só soltam de manhã
     Seus canticos suaves;
     E tu és sua irmã!


     De noite apenas trina
     O triste rouxinol:
     Toda a mais ave inclina
     O collo ao pôr do sol.


     Porquê? porque é ditosa!
     Porquê? porque é feliz!
     E a que sorri a rosa?
     Ao mesmo a que sorris!


     Á luz doirada e pura
     Do astro creador.
     Á noite, não, que é escura,
     Causa-lhe a ella horror.


     Ora uma nuvem negra,
     Uma pesada cruz,
     Uma alma que se alegra
     Só quando vê a luz


     De que elle, o sol, inunda
     O mar, quando se põe!
     Imagem moribunda
     D’um coração… que foi!


     Uma alma semelhante
     Não póde captivar
     Um rosto tão galante,
     Um tão galante olhar!


     E eu vi os caracteres
     Que a tua mão traçou:
     Mas vós… ah! vós, mulheres,
     Quem já vos decifrou!


     Mal te sustinha o pulso
     A delicada mão!
     Sentia-te convulso
     Bater o coração!


     Via-te arfar o seio…
     Corar… mudar de côr…
     E embora, ah! não, não creio…
     Tu não me tens amor!

   Portimão.


   CATURRAS


     Ah! compadre, a gente foge,
     Desabelha com calor;
     Aqui faz fresco na loge,
     É onde se está melhor;
     Mas que calor que fez hoje!


     – Pois, olhe, assim eu me désse
     De inverno quando faz frio,
     Como agora que elle aquece.
     Tome dois banhos no rio,
     Logo vê como arrefece.


     – Compadre, nunca me traga
     Taes coisas á collação;
     Lembra-me a maldita draga,
     Compadre do coração!
     Não me falle n’essa praga!


     – Tenho-lhe a mesma amizade
     Que o meu compadre lhe tem,
     Ás vezes dá-me vontade
     Até de a tragar tambem…
     Digo-lhe isto com verdade.


     – Ha-de isto chegar a pontos
     Que quem viver ha-de vêr!
     Já lá vão setenta contos,
     E a draga a apodrecer,
     E trabalhos nenhuns promptos.


     – Setenta, diz o compadre?
     Dão-lhe elles esse verniz…
     Lá como a sua comadre…
     Mas eu cá o que ella diz
     É como o que diz o padre…


     – Pois inda isso continúa?
     – Eu sei lá, compadre, eu sei!
     Ora canta, ora se amua…
     Eu é que já me lembrei
     De a pôr um dia na rua!


     – Compadre, tenha miolo,
     Isso não se faz assim;
     Eu não me tenho por tolo,
     E ponha os olhos em mim…
     Sirva-lhe isso de consolo.


     – Pois bem sei que é ninharia,
     Mas o compadre o que quer?
     Estimo a minha Maria,
     E isto de homem com mulher…
     Mas vamos á vacca fria:


     Com que a draga… – É empregada,
     Coisa que nunca se viu,
     Sendo uma peça aceada,
     A tirar lama do rio!
     Parece isto caçoada…


     – E caçoada indecente
     Porque outra coisa não é.
     Mais economicamente
     Quando vasasse a maré
     A tirava mesmo a gente.


     – E depois aquillo é lodo
     Que nunca póde prestar.
     Veja aterrar o caes todo
     Quando não ha-de importar…
     É gastar dinheiro a rodo.


     – Haja decima e derrama;
     Por causa do quê? do caes,
     Da draga ou como se chama,
     E outras coisinhas que taes
     Que tudo a final é lama.


     Pois sendo tudo bem feito
     Como á antiga, vá lá!
     Mas olhe, o caes não tem geito;
     De tudo quanto alli ha,
     A meu gosto, o parapeito.


     – Sim, senhor, obra segura,
     Obra como deve ser;
     Feio e forte; é o que dura:
     Foi sempre o que ouvi dizer
     A quem está na sepultura…


     – Mas era tudo escusado;
     N’esta, compadre, é que estou;
     E isto dá-me algum cuidado,
     Que o que meu pai me deixou
     Não foi nada mal ganhado.


     – Pois e, se quer que lhe conte,
     Já se ahi falla outra vez
     Em mandar fazer a ponte:
     Cuida esta gente talvez
     Que temos alguma fonte…


     – E havendo então uma barca…
     Como a Arca de Noé!
     Lá porque a gente se enxarca
     E não póde andar a pé
     Quando embarca e desembarca.


     – Escarranchem-se ao cachaço
     Dos marujos: pois então?
     Cá em taes obras nem passo
     Que pernas minhas darão;
     É gosto que lhes não faço.


     – Nada! havemos de ir agora
     Vêr ambos o que lá vai;
     Que a nós aquillo por ora
     Bem sei que nos não distrahe;
     Mas temos pouca demora.


     – Pois vamos, compadre, vamos.
     Sentamo-nos nos poiaes,
     Alli mesmo conversamos
     Ambos sósinhos no caes,
     E depois logo voltamos.

   Portimão.


   * * *


     Cosi trapassa, al trapassar d’un giorno,
     Della vita mortale il fiore e ‘l verde,
     Nè, perchè faccia indietro april ritorno
     Si rinfiora ella mai, nè si rinverde.


     Tasso.


     Foi-se-me pouco a pouco amortecendo
     A luz que n’esta vida me guiava,
     Olhos fitos na qual até contava
     Ir os degraus do tumulo descendo.


     Em se ella anuveando, em a não vendo,
     Já se me a luz de tudo anuveava;
     Despontava ella apenas, despontava
     Logo em minha alma a luz que ia perdendo.


     Alma gemea da minha, e ingenua e pura
     Como os anjos do céo (se o não sonharam…)
     Quiz mostrar-me que, o bem, bem pouco dura.


     Não sei se me voou, se m’a levaram,
     Nem saiba eu nunca a minha desventura
     Contar aos que inda em vida não choraram.


     Ah! quando no seu collo reclinado,
     – Collo mais puro e candido que arminho,
     Como abelha na flôr do rosmaninho
     Osculava seu labio perfumado;


     Quando á luz dos seus olhos… (que era vêl-os,
     E enfeitiçar-se a alma em graça tanta!)
     Lia na sua bocca a Biblia Santa
     Escripta em letra côr dos seus cabellos;


     Quando a sua mãosinha pondo um dedo
     Em seus labios de rosa pouco aberta,
     Como timida pomba sempre álerta,
     Me impunha ora silencio ora segredo;


     Quando, como a alveloa, delicada
     E linda como a flôr que haja mais linda
     Passava como o cysne, ou como, ainda
     Antes do sol raiar, nuvem doirada;


     Quando em balsamo d’alma piedosa
     Ungia as mãos da supplice indigencia,
     Como a nuvem nas mãos da Providencia
     Uma lagrima estilla em flôr sequiosa;


     Quando a cruz do collar do seu pescoço
     Estendendo-me os braços, como estende
     O symbolo d’amor que as almas prende,
     Me dizia… o que ás mais dizer não oiço;


     Quando, se negra nuvem me espalhava
     Por sobre o coração algum desgosto,
     Conchegando-me ao seu candido rosto,
     No perfume d’um riso a dissipava;


     Quando o oiro da trança aos ventos dando
     E a neve de seu collo e seu vestido
     – Pomba que do seu par se ia perdido,
     Já de longe lhe ouvia o peito arfando;


     Tinha o céo da minha alma as sete côres,
     Valia-me este mundo um paraiso,
     Distillava-me a alma um dôce riso,
     Debaixo de meus pés nasciam flôres.


     Deus era inda meu pai. E em quanto pude
     Li o seu nome em tudo quanto existe
     – No campo em flôr, na praia arida e triste,
     No céo, no mar, na terra e… na virtude!


     Virtude! Que é mais que um nome
     Essa voz, que em ar se esvái,
     Se um riso que ao labio assome
     N’uma lagrima nos cái!


     Que és, virtude, se de luto
     Nos vestes o coração?
     És a blasphemia de Bruto
     – Não és mais que um nome vão.


     Abre a flôr á luz, que a enleva,
     Seu calix cheio d’amor,
     E o sol nasce, passa e leva
     Comsigo perfume e flôr!


     Que é d’esses cabellos d’oiro
     Do mais subido quilate,
     D’esses labios escarlate,
     Meu thesoiro!


     Que é d’esse halito, que ainda
     O coração me perfuma!
     Que é do teu collo de espuma,
     Pomba linda!


     Que é d’uma flôr da grinalda
     Dos teus doirados cabellos,
     D’esses olhos, quero vêl-os,
     Esmeralda!


     Que é d’essa alma que me déste!
     D’um sorriso, um só que fosse,
     Da tua bocca tão dôce,
     Flôr celeste!


     Tua cabeça que é d’ella
     A tua cabeça d’oiro,
     Minha pomba! meu thesoiro!
     Minha estrella!


     De dia a estrella d’alva empallidece;
     E a luz do dia eterno te ha ferido.
     Em teu languido olhar adormecido
     Nunca me um dia em vida amanhecesse.


     Foste a concha da praia. A flôr parece
     Mais ditosa que tu. Quem te ha partido,
     Meu calix de crystal, onde hei bebido
     Os nectares do céo… se um céo houvesse!


     Fonte pura das lagrimas que choro!
     Quem tão menina e moça desmanchado
     Te ha pelas nuvens os cabellos d’oiro!


     Some-te, vela de baixel quebrado!
     Some-te, vôa, apaga-te, meteoro!
     É n’este mundo mais um desgraçado.


     E as desgraças, podia prevel-as
     Quem a terra sustenta no ar,
     Quem sustenta no ar as estrellas,
     Quem levanta ás estrellas o mar.


     Deus podia prevêr a desgraça,
     Deus podia prevêr e não quiz;
     E não quiz, não… se a nuvem que passa
     Tambem póde chamar-se infeliz!


     A vida é o dia d’hoje,
     A vida é ai que mal sôa,
     A vida é sombra que foge,
     A vida é nuvem que vôa;
     A vida é sonho tão leve
     Que se desfaz como a neve


     E como o fumo se esvái:
     A vida dura um momento,
     Mais leve que o pensamento,
     A vida leva-a o vento,
     A vida é folha que cái!


     A vida é flôr na corrente,
     A vida é sôpro suave,
     A vida é estrella cadente,
     Vôa mais leve que a ave;
     Nuvem que o vento nos ares,
     Onda que o vento nos mares,
     Uma após outra lançou,
     A vida– penna cahida
     Da aza d’ave ferida—
     De valle em valle impellida,
     A vida o vento a levou!


     Como em sonhos o anjo que me afaga
     Leva na trança os lirios que lhe puz,
     E a luz quando se apaga
     Leva aos olhos a luz;


     Como os ávidos olhos d’um amante
     Levam comsigo a luz d’um dôce olhar,
     E o vento do levante
     Leva a onda do mar;


     Como o tenro filhinho quando expira
     Leva o beijo dos labios maternaes,
     E á alma que suspira
     O vento leva os ais;


     Ou como leva ao collo a mãi seu filho,
     E as azas leva a pomba que voou,
     E o sol leva o seu brilho,
     O vento m’a levou.


     E tu és piedoso,
     Senhor! és Deus e pai!
     E ao filho desditoso
     Não ouves um só ai!
     Estrellas déste aos ares,
     Dás perolas aos mares,
     Ao campo dás a flôr,
     Frescura dás ás fontes,
     O lirio dás aos montes
     E tiras-m’a, Senhor!


     Ah! quando n’uma vista o mundo abranjo,
     Estendo os braços e, palpando o mundo,
     O céo, a terra e o mar vejo a meus pés;
     Buscando em vão a imagem do meu anjo,
     Soletro á froixa luz d’um moribundo
     Em tudo só– talvez…


     Talvez é hoje a Biblia, o livro aberto
     Que eu só ponho ante mim nas rochas, quando
     Vou pelo mundo vêr se a posso vêr;
     E onde, como a palmeira do deserto,
     Apenas vejo aos pés, inquieta, ondeando
     A sombra do meu sêr.


     Meu sêr, voou na aza da aguia negra
     Que, levando-a, só não levou comsigo
     D’esta alma aquelle amor!
     E quando a luz do sol o mundo alegra,
     Chrysalida nocturna, a sós commigo,
     Abraço a minha dôr!


     Dôr inutil! Se a flôr, que ao céo envia
     Seus balsamos, se esfolha, e tu no espaço
     Achas depois seus atomos subtis;
     Inda has-de ouvir a voz que ouviste um dia,
     Como a sua Leonor inda ouve o Tasso!…
     Dante… a sua Beatriz!


     – Nunca; responde a folha que o outono,
     Da haste que a sustinha a mão abrindo,
     Ao vento confiou:
     – Nunca; responde a campa onde, do somno,
     E quem talvez sonhava um sonho lindo,
     Um dia despertou.


     – Nunca; responde o ai que o labio vibra;
     – Nunca; responde a rosa que na face
     Um dia emmurcheceu:
     E a onda, que um momento se equilibra
     Em quanto diz ás mais: deixai que eu passe!
     E passou e… morreu!

   Coimbra.


   MÃI E FILHO


     Primicias do meu amor!
     Meu filhinho! do meu seio
     Tenro fructo que á luz veio
     Como á luz da aurora a flôr!


     Na tua face, innocente,
     De teu pai a face beijo,
     E em teus olhos, filho, vejo
     Como Deus é providente.


     Via em lamina doirada
     O meu rosto todo o dia
     E a minha alma não se havia
     De vêr nunca retratada?


     Quando o pai me unia á face,
     E em seus braços me apertava,
     Pomba, ou anjo nos faltava
     Que ambos juntos abraçasse!


     Felizmente, Deus que o centro
     Vê da terra e vê do abysmo,
     Que bem sabe no que eu scismo,
     Na minha alma um altar viu dentro:


     Mas com lampada sem brilho,
     Sem o deus a que era feito…
     Bafeja-me um dia o peito,
     E eis feito o meu gosto, filho!


     Como em lagrimas se espalma
     Dôr intima e se esvaece
     D’alma o resto quem podesse
     Vasar n’um beijo em tua alma!


     Mas em ti minha alma habita!
     Mas teu riso a vida furta…
     Mas (que importa!) morte curta!
     Se um teu beijo resuscita!

   Coimbra.


   * * *


     Toca a capello, vou vêl-o
     E vejo de toda a côr,
     Não doutores de capello,
     Mas capellos de doutor.

   Coimbra.


   * * *


     Amas, pobre animal! e tens tu pena?..
     Sim, póde na tua alma entrar piedade?
     Se póde entrar, eu sei! Negar quem ha-de
     Amor ao tigre, coração á hyena!
     Tudo no mundo sente: o odio é premio
     Dos condemnados só, que esconde o inferno.
     Tudo no mundo sente: a mão do Eterno
     A tudo deu irmão, deu par, deu gemeo.
     A mim deu-me esta gata, a mim deu-me isto…
     Esta fera, que as unhas encolhendo
     Pelos hombros me trepa e vem, correndo,
     Beijar-me… Só não vivo! amado existo!

   Evora.


   NÃO!


     Tenho-te muito amor,
     E amas-me muito, creio;
     Mas, ouve-me, receio
     Tornar-te desgraçada.
     O homem, minha amada!
     Não perde nada, goza;
     Mas a mulher é rosa…
     Sim, a mulher é flôr!


     Ora e, a flôr, vê tu
     No que ella se resume…
     Faltando-lhe o perfume,
     Que é a essencia d’ella,
     A mais viçosa e bella
     Vê-a a gente e… basta.
     Sê sempre, sempre, casta!
     Terás… quanto possuo!


     Terás, em quanto a mim
     Me alumiar teu rosto,
     Uma alma toda gosto,
     Enlevo, riso, encanto!
     Depois, terás meu pranto
     Nas praias solitarias…
     Ondas tumultuarias
     De lagrimas sem fim!


     Á noite, que o pezar
     Me arrebatar de casa,
     Irei na campa rasa
     Que resguardar teus ossos,
     Ah! recordando os nossos
     Tão venturosos dias,
     Fazer-te as cinzas frias
     Ainda palpitar!


     Mil beijos, dôce bem!
     Darei no pó sagrado,
     Em que se houver tornado
     Um corpo tão galante!
     Com pena, minha amante,
     De me não ter a morte
     Cahido a mim em sorte…
     Cahido a mim tambem!


     Já exhalando os ais
     Na lugubre morada
     Te vejo a sombra amada
     Sahir da sepultura…
     A tua imagem pura,
     Fiel, mas illusoria…
     Gravada na memoria
     Em traços tão leaes!


     Então, se ainda alli
     Teus vaporosos braços,
     Poderem dar abraços
     Como dão hoje em dia,
     Peço-te, sombra fria!
     No mais intimo d’elles
     Que a mim tambem me geles,
     E fique ao pé de ti!


     Mas, ai! meu coração!
     Tu porque assim te affliges,
     E tremula diriges
     A vista ao céo piedoso!…
     O quadro é horroroso,
     A scena triste e feia,
     Basta encerrar a idéa
     D’uma separação…


     Mas, ouve, existe Deus.
     Ora e, se Deus existe,
     Tão horroroso e triste
     Que pódes temer? Nada!
     Desfruta descançada
     O extasi, o enleio
     Em que eu já saboreio
     O jubilo dos céos!


     Deixa-me n’esse olhar
     Vêr como a lua assoma…
     Sim, deixa no aroma,
     Que a tua bocca exhala,
     Vêr como a rosa falla
     Quando a aurora a inspira…
     Vêr como a flôr suspira
     Por vêr o sol raiar!


     A morte para amor
     É exito sublime.
     A morte para o crime,
     É que é amarga e feia.
     A morte não receia
     O verdadeiro amante;
     Por ella a cada instante
     Implora elle o Senhor.


     É juntos, tu verás,
     Que nós expiraremos!
     Sim, juntos, que os extremos
     Olhares cambiando,
     Iremos despegando,
     Do involucro terreno,
     O espirito sereno
     Como a eterna paz!


     Vê, só porque suppuz
     Chegado esse momento,
     Já esse olhar mais lento…
     As vistas mais serenas…
     Bruxuleando apenas,
     Em languido desejo,
     Symphatico lampejo
     D’uma ineffavel luz!


     Ha, n’este triste valle
     De lagrimas, a imagem
     De dois n’essa passagem
     Para a eternidade…
     A nevoa, a anciedade,
     O jubilo que mata,
     Dão uma idéa exacta
     Do transito fatal.


     Mas essa imagem, flôr!
     É tão fiel, tão viva
     Que á sua luz activa
     Se cresta a flôr mimosa!
     E nem o homem goza:
     Se goza é um momento!
     Depois… o desalento!
     Depois… o desamor!

   Portimão.


   NA FOLHA D’UM ROMANCE


     Moldada ao bem nasci, mas debil planta
     Verguei de vicio ao sopro pestilente;
     D’entre o vicio porém minha alma ardente
     Castos hymnos a Deus saudosa canta.


     Ah! se um mentido affecto amor levanta
     N’um pobre coração inexperiente,
     D’elles a culpa é toda! uma innocente
     Não consulta a razão, razões supplanta.


     Cahi, verguei, Senhor! já pervertida
     Graças, beijos vendi, vendi belleza,
     Triste commercio de mulher perdida.


     Oh! mas, Deus do amor! foi só fraqueza:
     De impias mãos me arrancai, tirai-me a vida,
     Alcance-me o perdão mortal tristeza!

   Messines.


   * * *


     Lagrima celeste,
     Perola do mar,
     O que me fizeste
     Para me encantar!


     Ah! se tu não fosses
     Lagrima do céo,
     Lagrimas tão dôces
     Não chorára eu.


     Se nunca te visse
     Bonina do val,
     Talvez não sentisse
     Nunca amor igual.


     Pomba desmandada,
     Que é dos filhos teus,
     Luz da madrugada,
     Luz dos olhos meus!


     Meu suspiro eterno,
     Meu eterno amor,
     D’um olhar mais terno
     Que o abrir da flôr,


     Quando o nectar chora,
     Que se lhe introduz,
     Ao romper da aurora,
     Ao raiar da luz,


     Por entre a folhagem
     Onde mal se vê,
     Como a terna imagem
     Da que eu adorei.


     Que esta voz te enleve,
     Que este adeus lá sôe,
     Que o Senhor t’o leve,
     Que Deus te abençôe.


     Que o Senhor te diga
     Se te adoro ou não,
     Minha dôce amiga
     Do meu coração!


     Se de ti me esqueço,
     Se já me esqueci,
     Ou se mais lhe peço,
     Do que vêr-te a ti;


     A ti que amo tanto
     Como a flôr a luz,
     Como a ave o canto,
     E o Cordeiro a cruz,


     E a campa o cypreste,
     E a rola o seu par,
     Lagrima celeste!
     Perola do mar!

   Coimbra.


   DESCALÇA!


     Quem és, que ao vêr-te o coração suspira,
     E em puro amor desfaz-se!
     Raio crepuscular do sol que nasce,
     De lampada que expira!


     Como os teus pés são lindos! como é dôce
     A curva do teu peito!
     Oh! se o meu coração fosse o teu leito,
     E o teu amado eu fosse!


     Que preciosas perolas descobre
     Teu meigo humido labio!
     E, virgem! como Deus foi justo e sabio
     Em te fazer tão pobre!


     Não tens fofo velludo onde se atole
     Tua angelica imagem;
     Mas quando é bello o céo, bella a paizagem
     E quando é bello o sol?


     Limpo de nuvens, nú, derrete a neve
     E a aguia até desmaia.
     Tu não tens mais do que uma pobre saia,
     E essa, curtinha e leve.


     Onde o corpo te alteia, a saia avulta;
     Onde te abaixa, desce…
     És como a rosa! A rosa nasce e cresce,
     Não para estar occulta.


     O que te falta pois? os teus desejos
     Quaes são? de que precisas?
     Ah! não ser eu o marmore que pisas…
     Calçava-te de beijos!

   Coimbra.


   ADEUS!


     Adeus tranças côr de oiro,
     Adeus peito côr de neve!
     Adeus cofre onde estar deve
     Escondido o meu thesoiro!


     Adeus bonina, adeus lirio
     Do meu exilio d’abrolhos!
     Adeus oh luz dos meus olhos
     E meu tão dôce martyrio!


     Desfeito sonho doirado,
     Nuvem desfeita de incenso,
     Em quem dormindo só penso,
     Em quem só penso acordado!


     Visão sim mas visão linda!
     Sonho meu desvanecido!
     Meu paraiso perdido
     Que de longe adoro ainda!


     Nuvem, que ao sopro da aragem
     Voou nas azas de prata,
     Mas no lago que a retrata
     Deixou esculpida a imagem!


     Rosa d’amor desfolhada
     Que n’alma deixou o aroma,
     Como o deixa na redoma
     Fina essencia evaporada!


     Adeus sol que me alumia
     Pelas ondas do oceano
     D’esta vida, d’este engano,
     D’este sonho d’um só dia!


     No mesmo arbusto onde o ninho
     Teceu a ave innocente
     Se volta a quadra inclemente
     Acha abrigo o passarinho:


     Mas eu n’esta soledade
     Quando em meus sonhos te estreito,
     Rosto a rosto, peito a peito,
     Acordo e acho a saudade!


     Adeus pois morte! adeus vida!
     Adeus infortunio e sorte!
     Adeus estrella do norte!
     Adeus bussola perdida!

   Coimbra.


   A VICTORIA COLONNA


     Não sei que ha de divino, força é crêl-o
     N’esses teus olhos d’uma luz tão pura
     Que, ao vêl-os, tive logo por segura
     Aquella paz que é meu constante anhelo.


     Filha de Deus, nossa alma aspira a vêl-o;
     Desprezando caduca formosura,
     Ella, em seu giro eterno, só procura
     A fórma, o typo universal do bello.


     Não póde amar, não deve, uma alma casta
     Fugaz belleza, graça transitoria,
     Coisa que o tempo leva, o tempo gasta.


     Nem tambem alma digna de memoria
     Póde amar o prazer, que o bruto arrasta,
     Em vez do puro amor– sombra da gloria.

   Miguel-Angelo.
   Coimbra.


   N’UM CONVENTO


     Como a agua em funda gruta
     Gotta a gotta filtra e cái,
     Sem saber quem isso escuta
     O que lá por dentro vai:


     Como ao longe incerta e baça
     N’uma igreja alveja a luz,
     Que da lampada esvoaça
     E a vidraça reproduz:


     Mal te vi, moira encantada!
     Mas á luz dos olhos teus
     Murcha a lampada sagrada
     D’um altar do nosso Deus.


     Mal te ouvi, mas as suaves
     Melodias, que te ouvi,
     São mais dôces que as das aves
     Da aldêa onde nasci!


     Quem teve, bella captiva,
     Coração de te deixar
     Aqui enterrada viva,
     Sem amor, sem luz, sem ar!


     Era cego e surdo, juro,
     O miseravel algoz
     Que não viu olhar tão puro,
     Não ouviu tão pura voz!


     Eu não tendo a faculdade
     D’arrazar esta prisão,
     Sacrifico a liberdade
     Por tão dôce escravidão!…

   Coimbra.


   SONHO


     Ha muitos sonhos de imaginação,
     De mera phantasia:
     Outros, que são a voz da prophecia,
     A voz da intuição,
     A voz do coração.


     Pões fé em sonhos taes, Maria?… Pões?
     E fazes bem, que ás vezes
     Sonha a gente venturas e revezes,
     Que se tornam depois
     Bem certos! Ouve pois:


     Sonhei que era n’um valle. Anoiteceu.
     Então duas estrellas.
     (Tão lucidas, tão limpidas, tão bellas!)
     Vieram lá do céo
     Alumiar-me. E eu…


     Não sabia e pergunto: o que buscaes,
     Alampadas celestes!
     Vós, cá por este mundo… o que perdestes?
     Na terra não achaes
     Senão prantos e ais!


     Respondem-me as estrellas (como a quem
     As tivesse captivas,
     Tão tremulas! as bellas fugitivas)
     – Buscavamos alguem
     Que nos quizesse bem:


     É sorte nossa, é nossa condição
     Dar luz, ser norte e guia;
     Mas de mais boamente se alumia
     Na terra um coração
     Que nos tem affeição.—


     – Pois e se vós do céo, lá onde até
     Se ignora o que são dôres,
     Vindes á terra procurar amores,
     Estrellas! se assim é,
     Tendes-me aqui ao pé:


     Que em summa a noite da minha alma é tal
     Que eu pobre viajante
     Ando… se para traz, se para diante,
     N’este profundo val,
     Não sei nem bem mal.


     Guiai-me pois, estrellas do Senhor!
     E a jura que vos faço
     É que na terra não darei um passo
     Senão só por amor
     Do vosso resplendor!—


     Ellas então sorrindo-se, que eu vi,
     Tão meigas e suaves!
     Voaram como duas lindas aves;
     Indo poisar ahi…
     N’esse teu rosto… em ti!

   Lisboa.


   Á VISTA D’UM RETRATO


     Amo-te, flôr! Se te amo, Deus que o sabe
     Que o diga a teus irmãos, que o céo povoam,
     E ebrios de gloria canticos entoam
     A quem no mar, na terra e céos não cabe.


     Se te amo, flôr! que o diga o mar– que expelle
     Quanto é dominio, beija humilde a praia:
     Se mal que a lua lá das ondas sáia
     Nas rochas me não vê gemer com elle.


     Amo-te, flôr! se te amo, o sol que o diga!
     Quanto lá da montanha aos céos se eleva,
     Se entre os vermes do pó que o vento leva,
     Me banha a mim tambem na luz amiga.


     Se te amo, flôr? Sem ti, que noite escura,
     Meu céo, meu campo em flôr, meu dia e tudo!
     Diga-te a noite minha se te illudo,
     Se em vida já sem ti, sonhei ventura!


     O anjo que a berço humilde e escasso
     Do céo me veio alumiar piedoso,
     E em lagrimas e riso, pranto e gozo,
     Desde então me acompanha passo a passo;


     És tu! Amo-te e muito! O que fluctua
     Na fornalha que o sopro eterno accende,
     Não beija a mão do anjo que o suspende
     Com mais amor que eu beijo a sombra tua!

   Coimbra.


   A LUA


     Esse olhar silencioso
     Em que lingua se traduz?
     Falla-me, oh astro saudoso,
     Luz do céo, pallida luz!
     Que aereas visões me acordas,
     Que imagem, lua, recordas
     N’essa prateada côr?
     Que ha em ti, que a dôr mitiga,
     Que ha em ti, lampada amiga,
     De meigo e consolador?


     Escuta, pallida lua,
     Dá-me um sorriso dos teus,
     Dá-me uma lagrima tua,
     Se és a pupilla de Deus!
     Vê que outros mimos não tenho,
     Que em tua face desenho
     A face do meu amor:
     Uma só lagrima! fria,
     Que ella me cáia… diria
     Que uma lagrima cahia
     Do céo ao menos na dôr!

   Coimbra.


   JOVEN CAPTIVA


     Respeita a foice a espiga verde ainda;
     Sem medo da vindima, o estio inteiro,
     Bebe o pampano as lagrimas da aurora:
     E eu verde como a espiga, tenra e linda
     Como o pampano, hei-de morrer? não quero:
     Quero, mas não por ora!


     Talvez que a outrem, morte, grata fosses.
     Espero! Embora em lagrimas me lave,
     Varre-me o norte a mim a face? inclino-a.
     Se ha dias tristes, ai! ha-os tão dôces…
     Sem amargo, que mel, por mais suave
     Que mar, em paz continua?


     Benefica illusão meu seio habita.
     Sepulte-me este carcere inhumano;
     A aza nivea da fé não se agrilhôa.
     Escapa ao laço da prisão maldita,
     Mais viva e alegre, a esse aereo oceano,
     A alvéloa canta e vôa.


     Hei-de morrer? porque? se não diviso
     Em minha alma um remorso; durma ou vele,
     Se eu velo e durmo em paz, na paz do justo!
     Se em cada rosto a luz me abre um sorriso;
     Aqui mesmo, onde a mágoa o riso expelle;
     E a luz assoma a custo!


     O fim do meu destino é lá tão longe!
     Quantos passei dos alemos que adornam
     Esta bella viagem? Assentada
     Ao banquete da vida apenas hoje,
     A taça ainda cheia as mãos entornam,
     Dos labios illibada.


     Estou na primavera, oh segadores!
     E as mais quadras do anno havia agora
     De não acompanhar o sol? havia?
     Debruçada em meu pé, gloria das flôres,
     Eu não vi mais do que raiar a aurora;
     Quero acabar meu dia.


     Espera um pouco, oh morte! nada perdes.
     Antes consola os que o remorso, o medo,
     O desalento pallido devora!
     Guarda-me ainda o campo grutas verdes!
     As musas, cantos! e o amor… Segredo!
     Não morro, não, por ora!


     Assim, encarcerada, o rosto lindo
     E a vista alçando a regiões ignotas,
     Minha musa entoou na fé mais viva:
     E eu, as languidas mágoas sacudindo,
     Moldei em dôce verso as dôces notas
     D’essa joven captiva!

   André-Chénier.
   Coimbra.


   * * *


     Mulher! quando nos braços
     Te escuto uma canção,
     Não vês em meus abraços
     Profunda commoção?
     É que o teu canto á mente
     Me traz vida melhor…
     Ah!
     Cantai continuamente,
     Cantai, oh meu amor!


     Quando sorris, assume
     Teu rosto uma expressão,
     Que o mais feroz ciume
     Se desvanece então.
     Sorriso tal desmente
     Um coração traidor…
     Ah!
     Sorri continuamente,
     Sorri, oh meu amor!


     Quando tranquilla e pura,
     Te estou a vêr dormir,
     Que vozes se afigura
     Teu halito exprimir?
     Contemplo então contente
     Teu corpo encantador…
     Ah!
     Dormi continuamente,
     Dormi, oh meu amor!

   Letra de V. Hugo. Musica de Gounod.
   Lisboa.


   UM BEIJO


     Seria o beijo
     Que te pedi,
     Dize, a razão
     (Outra não vejo)
     Porque perdi
     Tanta affeição?


     Fiz mal, confesso;
     Mas esse excesso,
     Se o commetti,
     Foi por paixão,
     Sim, por amor
     De quem?… de ti!
     Tu pensas, flôr,
     Que a mulher basta
     Que seja casta,
     Unicamente?
     Não basta tal.
     Cumpre ser boa,
     Ser indulgente.
     Fiz-te algum mal?
     Pois bem: perdôa!


     É tão suave
     Ao coração
     Mesmo o perdão
     D’offensa grave!
     Se o alcançasse,
     Se o conseguisse,
     Quizera então
     Beijar-te a mão,
     Beijar-te a face…
     Beijar? que disse!
     (Que indiscrição…)
     Perdão! perdão!

   Lisboa.


   FRANCISCA DE RIMINI


     Disse eu então: poeta, vês aquelles,
     Abraçados, velozes como o vento?
     Desejava poder fallar com elles.


     – Chamando-os com enternecimento,
     Em cá passando mais do nosso lado,
     São dois amantes, lograrás o intento.


     Assim que o vento os aproxima, brado:
     Oh almas d’uma eterna anciedade,
     Vinde fallar-me, se vos isso é dado.


     Como um casal de pombas, com saudade
     Do ninho, vem no ar, d’aza espalmada,
     Não mais que por impulso da vontade;


     Rompendo aquella aragem empéstada,
     Acodem lá do bando onde anda Dido
     Á supplica tocante e magoada.


     «Ah mortal generoso e condoído,
     Que nos visita n’este escuro horrendo,
     Deixando nós de sangue o chão tingido!


     «Do Senhor impetráramos podendo,
     Já que tens dó do nosso mal enorme,
     O teu descanço eterno em fallecendo.


     «Queiras ouvir-nos ou fallar, conforme,
     É só dizer ou perguntar, mais nada;
     Em quanto o vento, como agora, dorme.


     «A terra, onde nasci, fica assentada
     Na praia onde a final o Pó descança,
     E os que o seguem na marcha arrebatada.


     «Amor, que em nenhum moço acha esquivança
     Prendeu este a um corpo… que roubado
     Foi á minha alma em barbara vingança!


     «Amor, que obriga amar quem é amado,
     Poz-me com elle tão condescendente,
     Que ainda, como vês, me anda abraçado.


     «Amor nos deu a morte juntamente.
     Quem nos matou irá para as Caínas.»
     Disseram elles isto fielmente.


     Depois d’ouvir as victimas mofinas,
     Scismando cabisbaixo, em tal postura,
     Pergunta-me o poeta: em que imaginas?


     Começo respondendo: oh desventura!
     Quanta esperança! quanta sympathia
     A ambos não cavou a sepultura!


     E voltando-me a quem me referia:
     Olha Francisca! dó dos teus tormentos
     Estas lagrimas tristes desafia.


     Mas na quadra dos vagos sentimentos,
     Conta-me: como foi que conheceste
     Os amorosos languidos momentos!


     «O desgosto maior d’um triste é este,
     Fallar do tempo que passou, confesso:
     Que o diga o proprio guia que trouxeste


     «Mas desejando tu com tanto excesso
     Conhecer de raiz esta amizade,
     Entre vozes e lagrimas começo:


     «Liamos ambos, por curiosidade,
     Certa historia d’amores, que idearam,
     Nós sós, um dia, livres de maldade.


     «Muita vez nossos olhos se espantaram,
     E descoramos, lendo a historia estranha;
     Mas dos lances que mais nos abalaram,


     «Foi quando em summa o terno amante apanha
     O dôce beijo, por que andava ardendo:
     Este, que eternamente me acompanha,


     «Beija-me a bocca a mim, todo tremendo!
     A culpa foi do livro que se lia!
     Não se continuou o dia lendo.»


     Em quanto assim Francisca respondia,
     Chorava Paulo, a ponto, d’aterrado
     Me vêr nas convulsões da agonia,
     E cahir, como um corpo inanimado!

   Dante.
   Lisboa.


   PAIXÃO


     Suppõe que d’uma praia, rocha ou monte,
     Com essa vista embaciada e turva
     Que dá aos olhos entranhavel dôr;
     Tinhas podido vêr transpôr a curva,
     Pouco a pouco, do liquido horisonte,
     A saudosa barca, que levasse
     Aquelle, a quem primeiro uniste a face
     E o teu primeiro amor!


     Depois, que toda mágoa e saudade,
     Da mesma rocha ou alcantil deserto,
     Olhando ávidamente para o mar;
     Vias na solitaria immensidade,
     Vagas ficções d’um pensamento incerto,
     Surgir das ondas, desfazer-se em espuma;
     Não alvejando, nunca, vela alguma
     E, sempre, a suspirar.


     Até que á luz d’uma intuição sublime
     D’alma arrancavas o gemido extremo
     De saudade, desespero e dôr!…
     Pois é assim que eu soffro, assim que eu gemo!
     Que nuvem negra o coração me opprime;
     Nuvem de mágoa, nuvem de ciume,
     Em te não vendo á hora do costume,
     Meu anjo e meu amor!

   Lisboa.


   ESCREVE!


     Não sei o que suppôr
     Do teu silencio. Escreve!
     Quem é amado deve
     Ser grato ao menos, flôr!
     Se eu fosse tão feliz
     Que te fallasse um dia
     De viva voz, diria
     Mais do que a carta diz.
     Mas, olha, tal qual é
     Não rias d’esse escripto
     Que, pouco ou muito, é dito
     Tudo de boa fé.
     Ha n’esse teu olhar
     A dôce luz da lua,
     Mas luz que se insinua
     A ponto de abrazar…
     Pareça n’elle sim
     Que ha só doçura, embora:
     Ha fogo que devora…
     Que me devora a mim!
     Que mata, mas que dá
     Uma suave morte;
     Mata da mesma sorte
     Que uma arvore que ha:
     Que ao pé se lhe ficou
     Acaso alguem dormindo
     Adormeceu sorrindo…
     Porém não acordou.
     Esse teu seio então,
     Que encantadora curva!
     Como de o vêr se turva
     A vista e a razão!
     Como até mesmo o ar
     Suspende a gente logo…
     Pregando olhos de fogo
     Em tão formoso par!
     Oh seio encantador,
     Delicioso seio!
     Que jubilo, que enleio
     Libar-lhe o nectar, flôr!
     Eu tenho muita vez
     Já visto a borboleta
     Na casta violeta
     Poisar os leves pés:
     E n’um enlevo tal,
     N’uma avidez tamanha,
     Que a gente a não apanha
     Com dó de fazer mal!
     Pegada á flôr então
     No pé curvinho e molle,
     As azas nem as bole
     Toda sofreguidão!
     Poisou… adormeceu!
     Só vê, só ouve e sente
     O calix rescendente
     D’aquelle mel do céo!
     Pois vê com que prazer
     E com que ardente sêde
     Te havia… (que não hei-de!…)
     Tambem beijar, sorver!
     Mas eu só peço dó,
     Só peço piedade!
     Mata-me a saudade
     Com duas linhas só!
     Eu, a não ser em ti
     Achar allivios, onde?
     Escreve-me! responde
     Á carta que escrevi!
     Cançado de esperar
     Ás vezes quando sáio,
     Pensas que me distraio?
     Pois volto com pezar!
     Concentra-se-me em ti
     A alma de tal modo
     Que esse bulicio todo
     Nem o ouvi, nem vi!
     Ninguem te substitue,
     Porque só tu és bella!
     Que estrella a minha estrella,
     E que infeliz que eu fui!
     Mas devo-te suppôr
     Sempre indulgente e boa,
     Escreve-me e perdôa
     Meu violento amor!
     Respeita uma affeição
     Inutil mas sincera.
     Tu és mulher, pondera
     O que é uma paixão.
     Com sangue era eu capaz
     De te escrever; portanto,
     Tinta não custa tanto!
     E não me escreverás?
     Uma palavra, sim,
     Que me não amas… Queres?
     Em quanto me escreveres,
     Tu pensarás em mim!
     Só essa idéa, crê,
     Encerra mais doçura
     Que as provas de ternura
     Que outra qualquer me dê!

   Lisboa.


   MALMEQUER


     Talvez em eu morrendo a teus ouvidos
     Chegue a noticia, que hoje os factos vôam,
     E oiças então os intimos gemidos
     Que exhalo e te não sôam.


     Talvez então, embora me não ames,
     Com esses olhos humidos de fito
     Na minha sombra: «Desgraçado! exclames;
     Amava-me, acredito.


     «Levou a vida amando-me: que prova
     Me podia alguem dar de mais ternura,
     Ingrata como eu era! Abri-lhe a cova,
     Cavei-lhe a sepultura!


     «Hei-de regal-a de meu pranto. Julgo
     Do meu dever… agradecer-lhe agora!
     Purificar-me em lagrimas! O vulgo
     Que me censure embora.


     «Hei-de ir dispôr um pé de saudade
     Na terra onde elle descançou da lida;
     Mostrar-lhe amor, mostrar-lhe piedade,
     Que não mostrei em vida!»


     Se fôres, meu amor! uma perpetua,
     E uma saudade ser-me-hia dôce!
     Mas só perpetua ou saudade, aceito-a,
     E um malmequer que fosse.

   Lisboa.


   VIRGINIA

 //-- Para se recitar no theatro do Príncipe-Real --// 

     Senhores! vêde o sol; diariamente
     Nasce, cruza esse espaço e, no poente,
     Acaba de brilhar.
     É util, é preciso, é necessario,
     Não é pois inconstante, não é vario;
     É certo, é regular!


     Hervas que nutrem, animaes que comem,
     E a imagem de Deus– que falla– o homem,
     Sem essa luz, dizei:
     Vegetavam acaso, existiriam?
     Os echos d’esses valles repetiam
     Alguma voz? O que!…


     Seria tudo um ermo escuro e mudo;
     Tudo insensivel, solitario tudo!
     Mas Deus cria essa luz;
     E um mar sem praias de silencio e morte,
     Sêres de toda a casta– toda a sorte,
     Produz e reproduz!


     Sim, essa luz benefica converte,
     Por mysteriosa alchimia, frio, inerte,
     Imperceptivel grão
     Em tenras hastes, em botões mimosos,
     Folhas, flôres e fructos saborosos
     Que recamam o chão!


     Mas julgaes vós agricola sómente
     A mão do creador omnisciente?
     Pergunta singular!
     Basta só vêr a ondeada trança
     Com que elle adorna a virgem que vos lança
     O seu primeiro olhar!


     A terra é de côr varia, a planta, verde:
     Porque e para que? O que se perde
     Em ter tudo uma côr?
     O que se ganha em ser tão bem pintada,
     Symetrica, mimosa, perfumada
     Uma ephemera flôr?


     É que Deus é artista! e noite e dia
     E céo e terra e mar o denuncia…
     Vêde nascer o sol!
     Pôr-se alta noite a lua encantadora…
     Em quanto ao mesmo tempo canta e chora
     Ao longe o rouxinol!


     Deus é artista, sim; Deus ama o bello,
     Mais talvez do que o util. O desvelo
     Com que elle trata a flôr!
     Antes de abrir… que mãi tão carinhosa
     Resguarda, mais solicita que a rosa,
     Um seu botão d’amor!


     Nem podia sahir obra incompleta
     Das mãos de Deus: geometra e poeta
     Em summo grau, traçou
     A compasso a abobada celeste;
     Mas de que lindas nuvens a reveste
     Que ao vento tomam vôo!


     Creou, de fogo, o sol– o grande astro!
     E creou, não de fogo, d’alabastro
     A sua bella irmã
     – Sombra apenas do sol, desnecessaria,
     Luz phantastica, vaga, solitaria,
     Inutil, fátua, vã…


     Mas luz intima! luz do sentimento!
     Luz d’amor e de fé! que inspira alento
     A nossos corações!
     Unica luz, á qual se mede o fundo
     D’esse concavo mar… d’esse outro mundo…
     D’esse mundo de soes!


     Porque se ao sol deveis fructos e flôres,
     Á lua deveis mais, deveis amores…
     Deveis… como direi?
     Esta entranhavel, vaga saudade
     De não sei que melhor realidade,
     Que o mundo que se vê…


     Quantas vezes, depois da lida insana
     D’um dia, n’este mar da vida humana,
     Vendo surgir no céo
     Essa luz melancolica e suave,
     Eu acho então, e com que allivio, a chave
     D’este mysterio meu!..


     D’este amor por phantasticos amores…
     Comtudo mais leaes e duradores
     Que os d’esse mundo são!
     D’este mundo de sombras… até prestes,
     Sombra tambem, á sombra dos cyprestes
     Achar satisfação!


     E eu digo, digo á lua scismadora
     Com os olhos risonhos de quem chora
     Pranto consolador:
     Se pois Deus te creou porque eras bella…
     O que vale o sol mais do que uma estrella?
     Um rei do que um pintor?


     Ao vêr-te, dôce lampada, suspensa
     De vaporosa nuvem, n’essa immensa
     Abodada dos céos,
     Pareces-me o thuribulo sagrado
     Com os rolos de incenso evaporado
     Em tua honra, oh Deus!


     E a minha vista sofrega acompanha
     Esse clarão phantastico á montanha
     Ou da terra ou do mar,
     Onde, acabada a obra do seu dia,
     Astro d’amor e de melancolia,
     Se deita a descançar.


     E eu descanço tambem; filha da arte…
     Cumpre-me a mim, oh lua, contemplar-te!
     E pergunte-me alguem:
     – Tu que fazes no mundo, mulher futil?
     – O que Deus faz… na flôr, na lua inutil…
     Sou artista tambem.

   Lisboa.


   PRIMEIRO PSALMO DE DAVID


     Bemdito o que não cahe em se guiar
     Por conselhos de gente depravada;
     E em vendo que vai mal, muda de estrada,
     E nunca se demora em mau lugar;


     Que o seu empenho é só unicamente
     A lei de Deus, que estuda noite e dia.
     Como a arvore ao pé d’agua corrente,
     Dá a seu tempo o fructo que devia.


     Nunca lhe cahe a folha; empresa sua
     Sahe por força conforme o seu intento;
     Em quanto o impio, o mau trabalha e sua,
     E é sempre como o pó, que espalha o vento!


     No tribunal, onde ha-de ser ouvido,
     Não conte com sentença a seu favor;
     Que não entra no numero escolhido
     Dos justos, dos amigos do Senhor.


     O justo, Deus bem sabe o seu caminho,
     E guia-o, não o deixa andar sósinho:
     E o caminho do mau, pelo contrario,
     É beco sem sahida e solitario.

   Messines.


   SEGUNDO PSALMO DE DAVID


     Porque anda o mundo todo enfurecido,
     Se esforços contra Deus são todos vãos?
     Os grandes, mais os reis, deram as mãos
     Contra o Senhor, contra o seu Ungido,


     – Estas correntes, é despedaçal-as,
     Este jugo atirar com elle fóra!
     E lá cima no céo, o que lá mora
     Não faz mais que sorrir-se de taes fallas.


     Mas em lhe dando a ira, aonde então
     Se hão-de metter, com medo, os desgraçados!
     Coroou-me rei no alto de Sião,
     Cumpre-me publicar os seus mandados.


     «Tu és meu filho; disse-me o Senhor:
     Gerei-te hoje; pedir com confiança!
     Verás o mundo todo ao teu dispôr,
     Terras e povos, como propria herança.


     «Vara de ferro para os ir guiando,
     E fazel-os guardar-te obediencia;
     E elles de barro mal cozido e brando
     Que os partas em te oppondo resistencia.»


     Agora pois vós outros, reis, juizes,
     Reparai no que eu digo, e vêde lá;
     Servi a Deus, e dai-vos por felizes
     Cumprindo á risca as ordens que elle dá.


     Tomai os meus conselhos; ou, senão,
     Tende já como certa a perdição.
     Que em se elle irando, é como um raio; aquelle
     Que o despreza e não crê, infeliz d’elle!

   Messines.


   CANTICO DOS CANTICOS DE SALOMÃO

   Para os corações puros tudo é puro.
 S. Paulo a Tito.


   I. CHEGADA

   A Sulamense

     – Tomára já ter o gosto
     De o sentir beijar-me o rosto!

   Coro de Virgens

     – E onde ha mulher que te exceda?
     Só esse collo embebeda.
     O aroma que elle exhala,
     Nenhum balsamo o iguala.

   2.º Coro

     – O teu nome, fallar n’elle,
     Só fallar n’elle é tão dôce
     Como se um oleo nos fosse
     Escorrendo pela pelle.

   Salomão

     – Olha como todas ellas
     Te estimam tanto, as donzellas.

   A Sulamense

     – Sou tua, leva-me, vamos.

   Coro

     – E nós, que te não largamos,
     Te iremos correndo atraz
     Pelo rasto de perfume,
     Que deixas por onde vás,
     Das pomadas com que dás
     No corpo, como é costume.

   A Sulamense

     – Já el-rei me manda entrar
     Para a sala do jantar.

   Coro

     – Para saltar de alegria
     E festejar este dia,
     A nós basta-nos lembrar
     Que esse teu seio embebeda;
     Nem ha mulher que te exceda.

   2.º Coro

     – Quem te vê seja quem fôr
     Fica bebado d’amor.

   A Sulamense

     – Sou trigueira mas formosa,
     Moças de Jerusalem!
     Senão vêde o pavilhão
     Que arma em campo Salomão,
     Se ha coisa mais preciosa,
     E por fóra a côr que tem;
     Vêde as barracas dos moiros,
     Por dentro tantos thesoiros,
     Por fóra negras tambem.


     Não vos dê pois isso pena,
     Ter assim a côr morena:
     Minha mãi mandou-me pôr,
     Por culpa de meus irmãos,
     De guarda á vinha, o calor
     Queimou-me o rosto e as mãos:
     E eu, a vinha, é escusado
     Dizer-vos que nem eu tinha
     Senão agora o cuidado
     De estar a guardar a vinha.


     Ah! para que banda vás
     Com o gado, meus amores!
     E pela folga onde estás!
     Bem vês os outros pastores,
     E a gente não adivinha.
     Eu não hei-de andar atraz
     D’esses rebanhos sósinha.

   Salomão

     – Ah rainha das mulheres!
     Olha como tu te enganas,
     Que medo tens das cabanas,
     Que medo tens dos rebanhos,
     Que medo tens dos estranhos?
     Não te dê isso cuidado,
     Anda por onde quizeres
     Tambem guardando o teu gado.
     Em te vendo, mesmo só,
     Toda a gente se desvia,
     Como da cavallaria
     Dos carros de Pharaó.

   Coro

     – Dás no rosto certo ar
     D’aquella graça da rola,
     Que até encanta, arrebata.


     A garganta pódes pôl-a
     Ao pé do melhor collar.

   2.º Coro

     – Um te havemos de nós dar
     De oiro, ás pintinhas de prata,
     Que é lindo, e has-de gostar.

   A Sulamense

     Já não sei pelo que aguardo
     Que estando el-rei a jantar
     Lhe não entorno por cima
     Esta redoma de nardo
     Que é um balsamo de estima.


     Mas ha outro mais perfeito,
     E com o qual me perfumo:
     Eu a myrrha que costumo
     Trazer aqui em meu peito,
     É mesmo aquelle a quem amo.
     Nunca apanhei outro ramo
     Nem outro alcanfor colhi
     Nas hortas dos arredores
     Da cidade de Engaddi.

   Salomão

     – Como és bella, minha amante!
     Terá a pomba esse olhar?
     Outro não ha semelhante.

   A Sulamense

     – E quem mais bello e galante
     Mais formoso, meus amores!
     E mais de se cubiçar?

   Salomão

     – Vês, o nosso leito é este,
     Armado todo de flôres:
     E olha o tecto é de cypreste,
     Portas de cedro, tambem;
     Aqui não entra ninguem.

   A Sulamense

     – Sou a rosa de Sarão,
     A açucena do val.

   Salomão

     – Amada do coração,
     Entre as mais és tal e qual
     Uma açucena entre espinhos.

   A Sulamense

     – E entre os mais o meu amado
     A que ha-de ser comparado?
     Vês tu no bosque a maceira?
     És assim d’essa maneira.
     Por lograr os teus carinhos
     E boa sombra ha já muito
     Que eu andava a suspirar:
     Com effeito sombra e fructo
     Nada deixa a desejar.


     Elle deu-me do melhor
     Que tinha na sua adega;
     Mostrando-me assim primeiro
     Como faz quem tem amor.
     Trazei-me flôres de cheiro,
     Que estou como tonta e cega…
     Algum pomo, que esmoreço…
     Já um braço me elle passa
     Pelos hombros e me abraça
     Pela cinta… desfalleço…
     Ah desfalleço d’amor!

   Salomão

     – Pela corça e o veado,
     Moças de Jerusalem!
     Não a acordeis, cuidado!
     Deixar dormir o meu bem,
     Um somno bem socegado.



   II. ENTREVISTA

   A Sulamense

     – Quem é que eu oiço bradando?
     Oiço uma voz e por força
     Que é a voz d’elle esta voz:
     Ah! lá vem além saltando
     Montes e valles, nem corça
     Nem veado é mais veloz.


     Eil-o detraz da parede
     Além já da outra banda
     E o que elle faz, como elle anda
     A vêr no vallado todo
     E na cancella se ha modo
     De me pôr olho: ora vêde.

   Salomão

     – Oh minha amada! depressa
     Vem vêr o campo, anda, vem:
     Mettida em casa, meu bem!
     Que demora tua é essa?


     Foi o inverno passando,
     Até que a chuva acabou:
     Veio a herva rebentando,
     Revestiu a terra toda,
     Chegou o tempo da poda,
     Ouviu-se a rola arrulhando,
     O figo vem já inchando
     E a vinha está já em flôr:
     Pelo que estás esperando?


     Quando has-de tu, meu amor!
     Andar então passeando?
     Ouve lá que estamos sós,
     E aqui não ha quem nos oiça:
     Vês esta fresta? é um gosto
     Até pela pedra ensossa
     Vêr assomar o teu rosto,
     Ouvir essa linda voz.

   A Sulamense

     – Toda em flôr, como está bella!
     Mas lá o ter flôr que monta?
     Se as boas das raposinhas
     A tomam á sua conta,
     Depois a uva que é d’ella?
     Bons laços se lhe hão-de armar,
     Que ellas dão cabo das vinhas
     Se ninguem as apanhar.


     Tu és meu; e eu tambem
     Sou tua, de mais ninguem.
     Nós somos como um casal
     De corcinhas, com effeito;
     Andamos sempre a vêr qual
     Guarda ao outro mais respeito
     E lhe ha-de ser mais leal.
     Logo ali de manhãsinha,
     Ou pela fresca, á tardinha,
     Quando a corça e o veado
     Volta aos valles de Belher,
     Cá ficas sendo esperado:
     Não te esqueça, haja cuidado,
     Vê lá o que has-de fazer.



   III. SONHO

   A Sulamense

     – Não sei bem que sonho tive
     Esta noite, que acordei
     Sobresaltada, e que estive
     Ainda apalpando a cama
     Á busca de quem me ama
     E a quem ama; não achei:
     Levantei-me, rodeei
     A cidade toda em roda,
     Corri a cidade toda,
     Busquei tudo, não achei.
     Na rua pergunto á ronda:
     O meu amante que é d’elle?
     Não ha ninguem que responda.
     Vou andando; a poucos passos
     Vi vir um vulto: é aquelle.
     Chega e digo-lhe depois
     De o apertar nos meus braços:
     Quem se ama como nós dois,
     Só em mudando de estado
     É que vive descançado.
     Anda d’ahi, vamos pois
     Ao quarto mesmo onde dorme
     Minha mãi que me gerou
     (Que eu tua ainda não sou,
     Nem tu és meu, meu amigo!)
     A pedir a nossos paes
     A sua benção, conforme
     Costumam fazer os mais,
     E é já um costume antigo.

   Salomão

     – Pela corça e o veado,
     Moças de Jerusalem!
     Não a acordeis, cuidado,
     Deixai dormir o meu bem
     Um somno bem socegado.



   IV. NOIVADO

   Coro

     – Oh que mulher tão perfeita
     A que vem além andando!
     Vem espalhando um perfume
     E é tão airosa a andar!
     Parece quando se deita
     Incenso e myrrha no lume
     Que se vai desenrolando
     Aquella nuvem no ar.

   2.º Coro

     – Realmente é de invejar;
     Mas haja alguem que se afoite…
     Sessenta homens armados
     Dos mais desembaraçados
     Manda Salomão ficar
     De vigia toda a noite.

   Coro

     – É tudo á satisfação
     E gosto de Salomão.
     O andor onde elle sai,
     De tudo de que é composto,
     Cedro do Libano, olhai,
     É a coisa mais barata:
     Pernas e braços de prata,
     De oiro o mais fino o encosto;
     Onde põe os pés velludo:
     Não fallando em diamantes
     E pedras as mais brilhantes
     Que lá isso excede a tudo.

   2.º Coro

     – Além vem já Salomão:
     Lá vem elle já Coroado
     Com a corôa do noivado
     Que a mãi lhe poz na cabeça
     Pela sua propria mão.
     Hoje é o dia fallado:
     Moços, moças de Sião!
     Assomai-vos já depressa.

   Salomão

     – Que enlevo, que formosura!
     A pomba não tem de certo
     No olhar tanta doçura:
     E fóra o que anda encoberto.


     O cabello, em quantidade
     E tamanho, é singular;
     E não me lembra senão
     Das cabras de Galaad
     Que lhes rola pelo chão
     Em ellas indo a andar.


     Os dentes, em tu abrindo
     A tua boca, que lindo!
     Nem um rebanho d’ovelhas
     Todas brancas e parelhas
     Quando, em sendo tosquiadas,
     Veem saindo do banho
     D’uma em uma, enfileiradas,
     E atraz d’ellas, cada uma
     Seus dois gemeos d’um tamanho,
     Sem ser maninha nenhuma.


     Pois a bocca é comparada
     A uma fita encarnada.
     A voz ouvil-a é um gosto:
     Parte a romã pelo meio
     Verás as rosas do rosto;
     E fóra no que eu receio
     Fallar que me não é dado.


     O pescoço, pensa a gente,
     Em o vendo de collares,
     Que é a torre exactamente
     De David, n’esses ares,
     De baluartes, e toda,
     Lá cima, escudos á roda.


     Os peitos é um casal
     De corcinhas, que o seu pasto
     São açucenas do val:
     Nada mais timido e casto.
     E deitam um cheiro á goma,
     Da myrrha mais do incenso,
     A ponto que ás vezes penso
     Que elles são duas collinas
     Por onde aquellas resinas
     Espalham aquelle aroma.


     És formosa sem senão,
     Amada do coração!
     E que fazias tu lá
     Pelo Libano, pombinha!
     Deixa o Libano, anda cá.
     Vaes ser Coroada rainha
     No mais alto d’Amaná
     Ou d’Hermão ou de Sanir,
     Onde ha leões e onde ha
     Leopardos… deves vir.


     Trespassou-me o coração
     O teu olhar; o cabello
     Prendeu-me como um grilhão.
     O teu peito, basta vêl-o,
     Para embebedar d’amor.
     E só o cheiro que exhala
     O teu corpo, não ha flôr,
     Não ha rosa, não ha cravo
     Capaz de cheirar melhor.


     A tua bocca é um favo
     De doçura quando falla;
     A tua lingua, uma sopa
     De leite e mel; essa roupa
     Cheira a incenso, regala.


     Não ha nada comparado:
     Agua a mais pura e suave
     De fonte fechada á chave,
     Não é mais suave e pura.
     Esse rosto, essa figura…
     E só o bem que tu cheiras!
     Não me parece senão
     Um jardim todo plantado
     De romeiras e maceiras,
     Canfora, nardo, assim como
     Açafrão, canna de cheiro
     Aloes, myrrha e cinnamomo:
     O que ha no Libano em fim;
     Não ha fruta nem aroma,
     Que se ahi não cheire e coma.
     És a fonte d’um jardim
     Toda pureza e frescura:
     Torno d’agua que rebenta
     Inda mais viva e mais pura
     Lá no Libano, e ninguem
     Lhe tem mão nem aguenta
     A força com que ella vem.


     Fizesse já sul e norte
     No meu jardim, de tal sorte
     Que alegretes e pomares
     Andasse tudo nos ares.

   A Sulamense

     – É natural que tu comas
     Da fruta do teu jardim.

   Salomão

     – E que duvida que sim?
     Vamos primeiro aos aromas;
     O mel em favo depois
     E mais o vinho e o leite.
     Hoje é dia de banquete,
     Amigos do coração!
     É comer-lhe por quem sois
     E beber-lhe até mais não.



   V. SURPREZA

   A Sulamense

     Estava a dormir… que importa?
     Velava o meu coração.
     Oiço o meu amado á porta:


     – Ah formosa sem senão,
     Minha pomba, minha amada!
     Trago a cabeça molhada,
     E os anneis do meu cabello
     Todos escorrendo orvalho,
     Estou mais frio que um gelo.


     – Dá-me isto agora um trabalho…
     Despi-me, lavei os pés,
     Estou na cama deitada,
     E é uma pena, bem vês,
     Vestir-me agora outra vez,
     Andar inda levantada.


     Vai elle empurra o postigo,
     E eu assusto-me de modo
     Que, na verdade vos digo,
     Tremia-me o corpo todo.


     Salto da cama exhalando
     Um cheiro delicioso:
     Eu tinha-me estado untando
     Com um oleo precioso
     E inda as mãos me iam pingando.


     Abro a porta, eis senão quando
     Elle foge de repente…


     Eu só de lhe ouvir a falla
     Fui ás nuvens de contente.
     E em paga de tudo, abala;
     Bradei-lhe, não me acudiu,
     Vou por essas ruas fóra
     Á busca d’elle, até’gora:
     Parece que o chão se abriu…


     Encontro a ronda, espancou-me;
     Um dos da guarda á entrada
     Da cidade, esse, roubou-me
     A capa onde ia embrulhada.


     Peço-vos isto por bem,
     Moças de Jerusalem!
     Contai tudo ao meu amado,
     Que elle é por amor de quem
     Estou n’este triste estado.

   Coro

     – O teu amado… responde,
     Formosura sem igual!
     Ha tantos onde escolher
     Que é necessario um signal.
     Qual é o signal por onde
     Havemos de o conhecer?


     – Eu vos digo: o meu amado,
     D’aquellas côres no mundo,
     Estou que não ha segundo;
     É muito branco e córado.
     A cabeça é um thesoiro
     Do que ha de mais principal;
     Que a sabedoria vale
     Mais do que a prata e o oiro.


     De negro que é o cabello,
     Vêr um corvo, é mesmo vêl-o.


     Os olhos, aquelle olhar,
     Ha n’elles uma doçura,
     Que não sei a que os compare;
     Só sendo a um casalinho
     De pombas, que estão no ninho,
     Todas pureza e candura.


     As suas faces rosadas,
     Rescendem como um canteiro
     D’aquellas plantas de cheiro
     De que fazem as pomadas.


     A bocca, digo a verdade,
     Que a açucena mais pura
     Cheia da myrrha melhor
     Não apresenta a doçura,
     Pureza e suavidade
     Das fallas do meu amor.


     Aquelles dedos, vereis,
     São uns canudos de anneis!


     O ventre d’elle é assim
     Como um cofre de marfim.
     As pernas, de musculosas,
     São columnas magestosas
     E de marmore inteiriço
     Em bases de oiro maciço.
     É o Libano em altura,
     É como um cedro na matta
     A sua bella figura.


     É tão suave, tão pura
     A sua voz, que arrebata.


     Todo elle é singular
     E todo de cubiçar.
     Eil-o ahi retratado,
     Moças de Jerusalem!
     E não só o meu amado;
     O meu amante tambem.

   Coro

     – Ah rainha das mulheres!
     Se sabes para que banda
     Elle iria o teu amigo,
     Anda d’ahi, vamos, anda:
     Nós imos todas comtigo
     Á busca d’elle se queres.

   A Sulamense

     – Elle parece-me a mim
     Que ha-de andar no seu jardim,
     A apanhar açucenas,
     Que é do que elle gosta apenas.

   Salomão

     – Oh que formosa, meu bem!
     Não ha cidade afamada,
     Nem Thirsa ou Jerusalem,
     Mais bella que a minha amada.


     Mettes mais respeito andando,
     Que um exercito avançando.


     Os olhos faiscam fogo.
     Tira de mim essa vista,
     Que ao depois fugi eu logo
     Porque não ha quem resista.


     O cabello, em quantidade
     E tamanho, é singular!
     E não me lembra senão
     Das cabras de Galaad,
     Que o arrastam pelo chão,
     Em ellas indo a andar.
     Os dentes, em tu abrindo
     A tua bocca, que lindo!
     Nem um rebanho d’ovelhas,
     Todas brancas e parelhas,
     Ao vir sahindo do banho
     D’uma em uma, e cada uma
     Seus dois gemeos d’um tamanho,
     Sem ser maninha nenhuma.
     As faces não ha de certo
     Assim casca de romã
     De cor tão linda e tão sã.
     E fóra o que anda encoberto.


     És tão formosa, vê lá,
     Que as rainhas são sessenta,
     As concubinas oitenta,
     Donzellas, quem é que as dá
     Todas contadas? ninguem.
     Pois e de quantas possuo,
     A minha pomba, o meu bem,
     A minha mimosa, és tu.
     E o mesmo dizia já
     Lá em casa tua mãi,
     Com tantas filhas que tem.


     Quando chegaste, as donzellas,
     Concubinas e em summa
     As rainhas, todas ellas
     Sem excepção de nenhuma,
     Gritaram todas á uma:
     Viva a rainha das bellas!



   VI. PASSEIO

   Coro

     – Que linda mulher aquella!
     Nem a aurora lhe ganha.
     A lua não é tão bella
     Nem a luz do sol tamanha;
     Mette mais vista só ella
     Que um exercito em campanha.

   A Sulamense

     – Nunca tive um susto igual!
     Ia á horta das nogueiras,
     Ia passear ao valle,
     Vêr se tinha flôr a vinha
     E já romãs as romeiras;
     Mas a multidão que vinha
     Atraz de mim era tal
     Que não vi nada, e tão cedo
     Apanho tamanho medo.

   Coro

     – Oh não fujas, anda cá,
     Sulamense! deixa vêr
     Belleza como não ha
     No mundo nem póde haver.

   Salomão

     – Arrebata na verdade,
     Mas como um canto de guerra,
     Porque ao mesmo tempo aterra
     Este ar e magestade.


     O teu andar, que nobreza!
     E tem o pé uma graça
     Assim calçado, princeza!


     Os joelhos, que perfeitos!
     Não ha ourives que faça
     Eixos de oiro mais bem feitos.
     Umbigo, qual é a taça,
     D’estas taças pequeninas
     Por onde a gente costuma
     Beber bebidas mais finas,
     Tão redondinha? Nenhuma.


     É o ventre de tal modo
     Casto e fecundo, que apenas
     Um monte de trigo, todo
     Rodeado de açucenas
     Me parece haver no mundo
     Assim tão casto e fecundo.


     O teu seio é um casal
     De corcinhas, que o seu pasto
     São açucenas do val:
     Nada mais timido e casto!


     Lembra-me o pescoço a mim,
     Uma torre de marfim
     E os olhos, esses então
     Os dois lagos de Hesebão.


     Vês a torre que apparece
     Lá no Libano, e que diz
     Para Damasco? parece
     Na lindeza esse nariz.


     A cabeça vêl-a toda
     Por cima das mais, é bello,
     Como a serra do Carmelo,
     Toda collinas á roda.


     O cabello é tal e qual
     Um grande manto real!


     É tudo uma perfeição,
     Amada do coração!


     Vêr-te é vêr uma parreira
     Armada n’uma palmeira;
     E lá em cima os teus peitos,
     No tamanho e no feitio,
     Dois cachos d’uvas perfeitos
     Que a parreira produziu.
     E eu disse d’esta maneira:
     Dois cachos d’uvas tão bellos
     Hei-de ir lá cima colhel-os;
     Que bem se vê que a doçura
     Corresponde á formosura;
     E que a tua bocca é pura
     E a respiração é sã
     Como o cheiro da maçã
     Quando se apanha madura.


     – Como é suave e me encanta
     O que me estás a dizer!
     A voz da tua garganta
     Embebeda como o vinho,
     D’esse que a doçura é tanta
     Que se costuma beber
     Aos sôrvos, devagarinho.


     És só meu e eu tambem
     Sou tua, de mais ninguem.
     Anda com a tua amada
     Morar para o campo, amor!
     Iremos de madrugada,
     Logo ao romper da manhã,
     Em se a gente levantando,
     Vêr se a vinha já tem flôr,
     Se está em flôr a romã
     E se a fruta vai vingando.
     Alli é que eu hei-de então
     Abrir-te o meu coração.


     Estamos na primavera,
     A mandrágora já cheira,
     E em minha casa, estar lá,
     É como estar n’uma horta:
     Mesmo ao pé da nossa porta
     Temos quanta fruta ha.
     E o teu quinhão, meu amado!
     Assim do anno passado
     Como da que vem agora,
     Esse está sempre guardado.


     Ouvisse-te eu n’esta hora
     Chamar mãi á minha mãi!
     Como se tu com effeito
     Fosses criado ao seu peito
     Assim como eu fui tambem:
     Então já eu te beijava
     Ás claras e te abraçava
     Sem vergonha de ninguem.


     Vamos aonde ella dorme,
     A pedir a nossos paes
     A sua benção, conforme
     Costumam fazer os mais,
     E depois seja o que fôr
     É só mandar, meu amor!


     Verás como te hei-de dar
     D’um vinho delicioso
     E d’um licor precioso,
     De romã, que has de gostar.
     .........................
     Um braço já me elle passa
     Pelos hombros… e me abraça
     Pela cinta… o meu amado!
     – Deixai-a dormir, cuidado,
     Moças de Jerusalem!
     Deixai dormir o meu bem
     Um somno bem socegado.
     ......................

   Messines.


   * * *


     Ouviste-me não sei quê
     Trincolejar n’algibeira,
     Acudiste mui lampeira,
     Que me amavas. Já se vê.


     Tens amado mais de mil,
     Não era agora o primeiro.
     Mas pensas que era dinheiro?
     É a pedra e o fuzil.

   Messines.