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|  Fernando Pessoa
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|  Mensagem
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   Fernando Pessoa
   MENSAGEM


   A principal obra de "Pessoa ele-mesmo" é Mensagem, uma coletânea de poemas sobre os grandes personagens históricos portugueses. O livro foi, também, o único a ser publicado enquanto foi vivo.
   Na obra, Fernando Pessoa expressou por outras palavras a necessidade de provocar, de lutar contra as adversidades, de não ter medo de ir contra a corrente e de defender o que se acha justo e perfeito: “Para passar o Bojador / Há que passar além da dor / Deus ao mar o perigo e o abismo deu / Mas também foi nele que espelhou o céu.”
   Numa ode patriótica composta entre os anos 20 e 30, de demorada elaboração, intitulado Mensagem, o poeta Fernando Pessoa imaginou a Europa como um corpo de mulher. Estendida, tinha ela um dos seus cotovelos, o direito, fincado na Inglaterra e o outro, o esquerdo, recuado, na Península italiana, cabendo a Portugal ser o rosto nesta hipotética figuração. Pode não ter sido o rosto, mas a posição geográfica de Portugal, pequena faixa de terra voltada para a imensidão do Oceano à sua frente, condicionou seu destino por quase cinco séculos.
   Mensagem nada mais é do que Portugal virado para a Europa, mas da sua orla, do seu Atlântico feito universalidade. É um livro com uma finalidade universalista, como se pode perceber pelo que foi dito antes. Um poema trinitário, onde se propõem uma síntese – o cerne da nobreza; uma antítese – a posse do mar; e uma síntese – a futura civilização intelectual. Resumo de oito séculos, não é só poesia que exalta, mas sobretudo poesia que obscurece para iluminar, pelas regras dos alquimistas.
   Nota preliminar da obra
   O entendimento dos símbolos e dos rituais (simbólicos) exige do intérprete que possua cinco qualidades ou condições, sem as quais os símbolos serão para ele mortos, e ele um morto para eles.
   A primeira é a simpatia; não direi a primeira em tempo, mas a primeira conforme vou citando, e cito por graus de simplicidade. Tem o intérprete que sentir simpatia pelo símbolo que se propõe interpretar.
   A segunda é a intuição. A simpatia pode auxiliá-la, se ela já existe, porém não criá-la. Por intuição se entende aquela espécie de entendimento com que se sente o que está além do símbolo, sem que se veja.
   A terceira é a inteligência. A inteligência analisa, decompõe, reconstrói noutro nível o símbolo; tem, porém, que fazê-lo depois que, no fundo, é tudo o mesmo. Não direi erudição, como poderia no exame dos símbolos, é o de relacionar no alto o que está de acordo com a relação que está embaixo. Não poderá fazer isto se a simpatia não tiver lembrado essa relação, se a intuição a não tiver estabelecido. Então a inteligência, de discursiva que naturalmente é, se tornará analógica, e o símbolo poderá ser interpretado.
   A quarta é a compreensão, entendendo por esta palavra o conhecimento de outras matérias, que permitam que o símbolo seja iluminado por várias luzes, relacionado com vários outros símbolos, pois que, no fundo, é tudo o mesmo. Não direi erudição, como poderia ter dito, pois a erudição é uma soma; nem direi cultura, pois a cultura é uma síntese; e a compreensão é uma vida. Assim certos símbolos não podem ser bem entendidos se não houver antes, ou no mesmo tempo, o entendimento de símbolos diferentes.
   A quinta é a menos definível. Direi talvez, falando a uns, que é a graça, falando a outros, que é a mão do Superior Incógnito, falando a terceiros, que é o Conhecimento e a Conversação do Santo Anjo da Guarda, entendendo cada uma destas coisas, que são a mesma da maneira como as entendem aqueles que delas usam, falando ou escrevendo.
   Estrutura da obra
   Os poemas do livro estão organizados de forma a compor uma epopéia fragmentária, em que o conjunto dos textos líricos acaba formando um elogio de teor épico a Portugal. Traçando a história do seu país, Pessoa envereda por um nacionalismo místico de caráter sebastianista.
   O livro Mensagem está dividido em três partes: O Brasão, como primeira parte, representando em símbolo a nobreza na sua essência. Essa nobreza age no passado na segunda parte, O Mar Português e no futuro na terceira, O Encoberto. Três elocuções em latim acompanham cada parte, no seu inicio. Bellum sine bello para a primeira, ou seja, Guerra sem Guerrear, potência sem ato, a parte que se mantém sempre eterna, como nobreza e caráter. Possesio Maris para a segunda, ou seja, a nobreza que toma e possui com um ato, mas que com esse ato não se esgota minimamente – apenas é uma posse do mar, o ter e não o ser. É na terceira parte, na Pax in Excelsis, paz nas alturas, em que o homem se ultrapassa finalmente a si mesmo e se realiza plenamente no que sempre foi.
   Vejamos agora as partes, uma a uma.
   Brasão – conta-se a história das glórias portuguesas. Se estrutura como o brasão português, que é formado por dois campos: um apresenta sete castelos, o outro, cinco quinas. No topo do brasão, estão a coroa e o timbre, que apresenta o grifo, animal mitológico que tem cabeça de leão e asas de águia. Assim se dividem os poemas desta parte, remetendo ao brasão de Portugal. Versam sobre as grandes figuras da história de Portugal, desde Dom Henrique, fundador do Condado Portucalenses, passando por sua esposa, Dona Tareja, e seu filho, primeiro rei de Portugal, Dom Afonso Henriques, até o infante Dom Henrique (1394-1460), fundador da Escola de Sagres e grande fomentador da expansão ultramarina portuguesa, e Afonso de Albuquerque (1462-1515), dominador português do Oriente. Até o mito de Ulisses, que teria fundado a cidade de Ulissepona, depois Lisboa, é apresentado: "O mito é o nada que é tudo. / O mesmo sol que abre os céus / É um mito brilhante e mudo." Essa primeira parte da obra (O Brasão) é subdividida em 5 partes, e cada uma subdividida num daqueles números, como veremos a seguir:


   I. OS CAMPOS


   PRIMEIRO / OS CASTELOS


     A Europa jaz, posta nos cotovelos:
     De Oriente a Ocidente jaz, fitando,
     E toldam-lhe românticos cabelos
     Olhos gregos, lembrando.


     O cotovelo esquerdo é recuado;
     O direito é em ângulo disposto.
     Aquele diz Itália onde é pousado;
     Este diz Inglaterra onde, afastado,


     A mão sustenta, em que se apoia o rosto.
     Fita, com olhar sphyngico e fatal,
     O Ocidente, futuro do passado.
     O rosto com que fita é Portugal.



   SEGUNDO / O DAS QUINAS


     Os Deuses vendem quando dão.
     Comprasse a glória com desgraça.
     Ai dos felizes, porque são
     Só o que passa!


     Baste a quem baste o que Ihe basta
     O bastante de Ihe bastar!
     A vida é breve, a alma é vasta:
     Ter é tardar.


     Foi com desgraça e com vileza
     Que Deus ao Cristo definiu:
     Assim o opôs à Natureza
     E Filho o ungiu.




   II. OS CASTELOS


   PRIMEIRO / ULISSES


     O mito é o nada que é tudo.
     O mesmo sol que abre os céus
     É um mito brilhante e mudo —
     O corpo morto de Deus,


     Vivo e desnudo.
     Este, que aqui aportou,
     Foi por não ser existindo.
     Sem existir nos bastou.


     Por não ter vindo foi vindo
     E nos criou.
     Assim a lenda se escorre
     A entrar na realidade,


     E a fecundála decorre.
     Em baixo, a vida, metade
     De nada, morre.



   SEGUNDO / VIRIATO


     Se a alma que sente e faz conhece
     Só porque lembra o que esqueceu,
     Vivemos, raça, porque houvesse
     Memória em nós do instinto teu.


     Nação porque reencarnaste,
     Povo porque ressuscitou
     Ou tu, ou o de que eras a haste —
     Assim se Portugal formou.


     Teu ser é como aquela fria
     Luz que precede a madrugada,
     E é ja o ir a haver o dia
     Na antemanhã, confuso nada.



   TERCEIRO / O CONDE D. HENRIOUE


     Todo começo é involuntario.
     Deus é o agente.
     O herói a si assiste, vário
     E inconsciente.


     A espada em tuas mãos achada
     Teu olhar desce.
     «Que farei eu com esta espada?»
     Ergueste-a, e fez-se.



   QUARTO / D. TAREJA


     As nações todas são mistérios.
     Cada uma é todo o mundo a sós.
     Ó mãe de reis e avó de impérios,
     Vela por nós!


     Teu seio augusto amamentou
     Com bruta e natural certeza
     O que, imprevisto, Deus fadou.
     Por ele reza!


     Dê tua prece outro destino
     A quem fadou o instinto teu!
     O homem que foi o teu menino
     Envelheceu.


     Mas todo vivo é eterno infante
     Onde estás e não há o dia.
     No antigo seio, vigilante,
     De novo o cria!



   QUINTO / D. AFONSO HENRIQUES


     Pai, foste cavaleiro.
     Hoje a vigília é nossa.
     Dános o exemplo inteiro
     E a tua inteira força!


     Dá, contra a hora em que, errada,
     Novos infiéis vençam,
     A bênção como espada,
     A espada como benção!



   SEXTO / D. DINIS


     Na noite escreve um seu Cantar de Amigo
     O plantador de naus a haver,
     E ouve um silêncio múrmuro consigo:
     É o rumor dos pinhais que, como um trigo


     De Império, ondulam sem se poder ver.
     Arroio, esse cantar, jovem e puro,
     Busca o oceano por achar;
     E a fala dos pinhais, marulho obscuro,


     É o som presente desse mar futuro,
     É a voz da terra ansiando pelo mar.



   SÉTIMO (I) / D. JOÃO O PRIMEIRO


     O homem e a hora são um só
     Quando Deus faz e a história é feita.
     O mais é carne, cujo pó
     A terra espreita.


     Mestre, sem o saber, do Templo
     Que Portugal foi feito ser,
     Que houveste a glória e deste o exemplo
     De o defender.


     Teu nome, eleito em sua fama,
     É, na ara da nossa alma interna,
     A que repele, eterna chama,
     A sombra eterna.



   SETIMO (II) / D. FILIPA DE LENCASTRE


     Que enigma havia em teu seio
     Que só génios concebia?
     Que arcanjo teus sonhos veio
     Velar, maternos, um dia?


     Volve a nós teu rosto sério,
     Princesa do Santo Gral,
     Humano ventre do Império,
     Madrinha de Portugal!




   III. AS QUINAS


   PRIMEIRA / D. DUARTE, REI DE PORTUGAL


     Meu dever fez-me, como Deus ao mundo.
     A regra de ser Rei almou meu ser,
     Em dia e letra escrupuloso e fundo.
     Firme em minha tristeza, tal vivi.


     Cumpri contra o Destino o meu dever.
     Inutilmente? Não, porque o cumpri.



   SEGUNDA / D. FERNANDO, INFANTE DE PORTUGAL


     Deu-me Deus o seu gládio, porque eu faça
     A sua santa guerra.
     Sagrou-me seu em honra e em desgraça,
     As horas em que um frio vento passa


     Por sobre a fria terra.
     Pôsme as mãos sobre os ombros e doirou-me
     A fronte com o olhar;
     E esta febre de Além, que me consome,


     E este querer grandeza são seu nome
     Dentro em mim a vibrar.
     E eu vou, e a luz do gládio erguido dá
     Em minha face calma.


     Cheio de Deus, não temo o que virá,
     Pois venha o que vier, nunca será
     Maior do que a minha alma.



   TERCEIRA / D. PEDRO, REGENTE DE PORTUGAL


     Claro em pensar, e claro no sentir,
     É claro no querer;
     Indiferente ao que há em conseguir
     Que seja só obter;


     Dúplice dono, sem me dividir,
     De dever e de ser —
     Não me podia a Sorte dar guarida
     Por não ser eu dos seus.


     Assim vivi, assim morri, a vida,
     Calmo sob mudos céus,
     Fiel à palavra dada e à ideia tida.
     Tudo o mais é com Deus!



   QUARTA / D. JOÃO, INFANTE DE PORTUGAL


     Não fui alguém. Minha alma estava estreita
     Entre tão grandes almas minhas pares,
     Inutilmente eleita,
     Virgemmente parada;


     Porque é do português, pai de amplos mares,
     Querer, poder só isto:
     O inteiro mar, ou a orla vã desfeita —
     O todo, ou o seu nada.



   QUINTA / D. SEBASTIÃO, REI DE PORTUGAL


     Louco, sim, louco, porque quis grandeza
     Qual a Sorte a não dá.
     Não coube em mim minha certeza;
     Por isso onde o areal está


     Ficou meu ser que houve, não o que há.
     Minha loucura, outros que me a tomem
     Com o que nela ia.
     Sem a loucura que é o homem


     Mais que a besta sadia,
     Cadáver adiado que procria?




   IV. A COROA


   NUN'ÁLVARES PEREIRA


     Que auréola te cerca?
     É a espada que, volteando.
     Faz que o ar alto perca
     Seu azul negro e brando.


     Mas que espada é que, erguida,
     Faz esse halo no céu?
     É Excalibur, a ungida,
     Que o Rei Artur te deu.


     'Sperança consumada,
     S. Portugal em ser,
     Ergue a luz da tua espada
     Para a estrada se ver!




   V. O TIMBRE


   A CABEÇA DO GRIFO / O INFANTE D. HENRIOUE


     Em seu trono entre o brilho das esferas,
     Com seu manto de noite e solidão,
     Tem aos pés o mar novo e as mortas eras —
     O único imperador que tem, deveras,


     O globo mundo em sua mão.



   UMA ASA DO GRIFO / D. JOÃO O SEGUNDO


     Braços cruzados, fita além do mar.
     Parece em promontório uma alta serra…
     O limite da terra a dominar
     O mar que possa haver além da terra.


     Seu formidável vulto solitário
     Enche de estar presente o mar e o céu
     E parece temer o mundo vário
     Que ele abra os braços e lhe rasgue o véu.



   A OUTRA ASA DO GRIFO / AFONSO DE ALBUQUERQUE


     De pé, sobre os países conquistados
     Desce os olhos cansados
     De ver o mundo e a injustiça e a sorte.
     Não pensa em vida ou morte


     Tão poderoso que não quere o quanto
     Pode, que o querer tanto
     Calcara mais do que o submisso mundo
     Sob o seu passo fundo.


     Três impérios do chão lhe a Sorte apanha.
     Criou-os como quem desdenha.




   O MAR PORTUGUÊS


   Mar português – são apresentadas as navegações e conquistas marítimas de Portugal. Apresenta as principais etapas da expansão ultramarina que levou Portugal a ocupar um lugar de destaque no mundo durante os séculos XV e XVI: "E ao imenso e possível oceano / Ensinam estas Quinas, que aqui vês, / Que o mar com fim será grego ou romano: / O mar sem fim é português." Esta segunda parte (O Mar Português) é formada por 12 poemas:


   I. O INFANTE


     Deus quere, o homem sonha, a obra nasce.
     Deus quis que a terra fosse toda uma,
     Que o mar unisse, já não separasse.
     Sagroute, e foste desvendando a espuma,


     E a orla branca foi de ilha em continente,
     Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
     E viu-se a terra inteira, de repente,
     Surgir, redonda, do azul profundo.


     Quem te sagrou criou-te português.
     Do mar e nós em ti nos deu sinal.
     Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
     Senhor, falta cumprir-se Portugal!



   II. HORIZONTE


     O mar anterior a nós, teus medos
     Tinham coral e praias e arvoredos.
     Desvendadas a noite e a cerração,
     As tormentas passadas e o mistério,


     Abria em flor o Longe, e o Sul sidério
     'Splendia sobre as naus da iniciação.
     Linha severa da longínqua costa —
     Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta


     Em árvores onde o Longe nada tinha;
     Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:
     E, no desembarcar, há aves, flores,
     Onde era só, de longe a abstracta linha


     O sonho é ver as formas invisíveis
     Da distância imprecisa, e, com sensíveis
     Movimentos da esp'rança e da vontade,
     Buscar na linha fria do horizonte


     A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte —
     Os beijos merecidos da Verdade.



   III. PADRÃO


     O esforço é grande e o homem é pequeno.
     Eu, Diogo Cão, navegador, deixei
     Este padrão ao pé do areal moreno
     E para diante naveguei.


     A alma é divina e a obra é imperfeita.
     Este padrão sinala ao vento e aos céus
     Que, da obra ousada, é minha a parte feita:
     O porfazer é só com Deus.


     E ao imenso e possível oceano
     Ensinam estas Quinas, que aqui vês,
     Que o mar com fim será grego ou romano:
     O mar sem fim é português.


     E a Cruz ao alto diz que o que me há na alma
     E faz a febre em mim de navegar
     Só encontrará de Deus na eterna calma
     O porto sempre por achar.



   IV. O MOSTRENGO


     O mostrengo que está no fim do mar
     Na noite de breu ergueu-se a voar;
     A roda da nau voou três vezes,
     Voou três vezes a chiar,


     E disse: «Quem é que ousou entrar
     Nas minhas cavernas que não desvendo,
     Meus tectos negros do fim do mundo?»
     E o homem do leme disse, tremendo:


     «El-Rei D. João Segundo!»
     «De quem são as velas onde me roço?
     De quem as quilhas que vejo e ouço?»
     Disse o mostrengo, e rodou três vezes,


     Três vezes rodou imundo e grosso.
     «Quem vem poder o que só eu posso,
     Que moro onde nunca ninguém me visse
     E escorro os medos do mar sem fundo?»


     E o homem do leme tremeu, e disse:
     «El-Rei D. João Segundo!»
     Três vezes do leme as mãos ergueu,
     Três vezes ao leme as reprendeu,


     E disse no fim de tremer três vezes:
     «Aqui ao leme sou mais do que eu:
     Sou um povo que quer o mar que é teu;
     E mais que o mostrengo, que me a alma teme


     E roda nas trevas do fim do mundo,
     Manda a vontade, que me ata ao leme,
     De El-Rei D. João Segundo!»



   V. EPITÁFIO DE BARTOLOMEU DIAS


     Jaz aqui, na pequena praia extrema,
     O Capitão do Fim. Dobrado o Assombro,
     O mar é o mesmo: já ninguém o tema!
     Atlas, mostra alto o mundo no seu ombro.



   VI. OS COLOMBOS


     Outros haverão de ter
     O que houvermos de perder.
     Outros poderão achar
     O que, no nosso encontrar,


     Foi achado, ou não achado,
     Segundo o destino dado.
     Mas o que a eles não toca
     É a Magia que evoca


     O Longe e faz dele história.
     E por isso a sua glória
     É justa auréola dada
     Por uma luz emprestada.



   VII. OCIDENTE


     Com duas mãos —o Acto e o Destino —
     Desvendámos. No mesmo gesto, ao céu
     Uma ergue o fecho trémulo e divino
     E a outra afasta o véu.


     Fosse a hora que haver ou a que havia
     A mão que ao Ocidente o véu rasgou,
     Foi a alma a Ciência e corpo a Ousadia
     Da mão que desvendou.


     Fosse Acaso, ou Vontade, ou Temporal
     A mão que ergueu o facho que luziu,
     Foi Deus a alma e o corpo Portugal
     Da mão que o conduziu.



   VIII. FERNÃO DE MAGALHÃES


     No vale clareia uma fogueira.
     Uma dança sacode a terra inteira.
     E sombras desformes e descompostas
     Em clarões negros do vale vão


     Subitamente pelas encostas,
     Indo perder-se na escuridão.
     De quem é a dança que a noite aterra?
     São os Titãs, os filhos da Terra,


     Que dançam na morte do marinheiro
     Que quis cingir o materno vulto
     – Cingilo, dos homens, o primeiro —,
     Na praia ao longe por fim sepulto.


     Dançam, nem sabem que a alma ousada
     Do morto ainda comanda a armada,
     Pulso sem corpo ao leme a guiar
     As naus no resto do fim do espaço:


     Que até ausente soube cercar
     A terra inteira com seu abraço.
     Violou a Terra. Mas eles não
     O sabem, e dançam na solidão;


     E sombras desformes e descompostas,
     Indo perder-se nos horizontes,
     Galgam do vale pelas encostas
     Dos mudos montes.



   IX. ASCENSÃO DE VASCO DA GAMA


     Os Deuses da tormenta e os gigantes da terra
     Suspendem de repente o ódio da sua guerra
     E pasmam. Pelo vale onde se ascende aos céus
     Surge um silêncio, e vai, da névoa ondeando os véus,


     Primeiro um movimento e depois um assombro.
     Ladeiamo, ao durar, os medos, ombro a ombro,
     E ao longe o rastro ruge em nuvens e clarões.
     Em baixo, onde a terra é, o pastor gela, e a flauta


     Cailhe, e em êxtase vê, à luz de mil trovôes,
     O céu abrir o abismo à alma do Argonauta.



   X. MAR PORTUGUÊS


     Ó mar salgado, quanto do teu sal
     São lágrimas de Portugal!
     Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
     Quantos filhos em vão rezaram!


     Quantas noivas ficaram por casar
     Para que fosses nosso, ó mar!
     Valeu a pena? Tudo vale a pena
     Se a alma não é pequena.


     Quem quere passar além do Bojador
     Tem que passar além da dor.
     Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
     Mas nele é que espelhou o céu.



   XI. A ÚLTIMA NAU


     Levando a bordo ElRei D. Sebastião,
     E erguendo, como um nome, alto o pendão
     Do Império,
     Foi-se a última nau, ao sol aziago


     Erma, e entre choros de ânsia e de presago
     Mistério.
     Não voltou mais. A que ilha indescoberta
     Aportou? Voltará da sorte incerta


     Que teve?
     Deus guarda o corpo e a forma do futuro,
     Mas Sua luz projecta-o, sonho escuro
     E breve.


     Ah, quanto mais ao povo a alma falta,
     Mais a minha alma atlântica se exalta
     E entorna,
     E em mim, num mar que não tem tempo ou 'spaço,


     Vejo entre a cerração teu vulto baço
     Que torna.
     Não sei a hora, mas sei que há a hora,
     Demorea Deus, chame-lhe a alma embora


     Mistério.
     Surges ao sol em mim, e a névoa finda:
     A mesma, e trazes o pendão ainda
     Do Império.



   XII. PRECE


     Senhor, a noite veio e a alma é vil.
     Tanta foi a tormenta e a vontade!
     Restam-nos hoje, no silêncio hostil,
     O mar universal e a saudade.


     Mas a chama, que a vida em nós criou,
     Se ainda há vida ainda não é finda.
     O frio morto em cinzas a ocultou:
     A mão do vento pode erguêla ainda.


     Dá o sopro, a aragem —ou desgraça ou ânsia —
     Com que a chama do esforço se remoça,
     E outra vez conquistaremos a Distância —
     Do mar ou outra, mas que seja nossa!




   O ENCOBERTO


   O Encoberto – é apresentado o mito sebastianista de retorno de Portugal às épocas de glória. Apresenta o misticismo em torno da figura de Dom Sebastião, rei de Portugal cuja frota foi dizimada em ataque aos mouros em 1578. Muitas previsões, como a do sapateiro Bandarra e a do padre Antônio Vieira, prevêem o retorno de Dom Sebastião para resgatar o poderio de Portugal, criando o Quinto Império, marcando a supremacia de Portugal sobre o mundo: "Grécia, Roma, Cristandade, Europa, os quatro se vão Para onde vai toda idade. Quem vem viver a verdade Que morreu dom Sebastião?" Nesta terceira parte, cada uma de suas três subdivisões é, por seu turno, subdividida, respectivamente, em 5, 3 e 5 partes:


   I. OS SÍMBOLOS


   PRIMEIRO / D. SEBASTIÃO


     'Sperai! Cai no areal e na hora adversa
     Que Deus concede aos seus
     Para o intervalo em que esteja a alma imersa
     Em sonhos que são Deus.


     Que importa o areal e a morte e a desventura
     Se com Deus me guardei?
     É O que eu me sonhei que eterno dura
     É Esse que regressarei.



   SEGUNDO / O QUINTO IMPÉRIO


     Triste de quem vive em casa,
     Contente com o seu lar,
     Sem que um sonho, no erguer de asa
     Faça até mais rubra a brasa
     Da lareira a abandonar!


     Triste de quem é feliz!
     Vive porque a vida dura.
     Nada na alma lhe diz
     Mais que a lição da raiz
     Ter por vida a sepultura.


     Eras sobre eras se somem
     No tempo que em eras vem.
     Ser descontente é ser homem.
     Que as forças cegas se domem
     Pela visão que a alma tem!


     E assim, passados os quatro
     Tempos do ser que sonhou,
     A terra será teatro
     Do dia claro, que no atro
     Da erma noite começou.


     Grécia, Roma, Cristandade,
     Europa – os quatro se vão
     Para onde vai toda idade.
     Quem vem viver a verdade
     Que morreu D. Sebastião?



   TERCEIRO / O DESEJADO


     Onde quer que, entre sombras e dizeres,
     Jazas, remoto, sentete sonhado,
     E ergue-te do fundo de nãoseres
     Para teu novo fado!


     Vem, Galaaz com pátria, erguer de novo,
     Mas já no auge da suprema prova,
     A alma penitente do teu povo
     À Eucaristia Nova.


     Mestre da Paz, ergue teu gládio ungido,
     Excalibur do Fim, em jeito tal
     Que sua Luz ao mundo dividido
     Revele o Santo Gral!



   QUARTO / AS ILHAS AFORTUNADAS


     Que voz vem no som das ondas
     Que não é a voz do mar?
     E a voz de alguém que nos fala,
     Mas que, se escutarmos, cala,


     Por ter havido escutar.
     E só se, meio dormindo,
     Sem saber de ouvir ouvimos
     Que ela nos diz a esperança


     A que, como uma criança
     Dormente, a dormir sorrimos.
     São ilhas afortunadas
     São terras sem ter lugar,


     Onde o Rei mora esperando.
     Mas, se vamos despertando
     Cala a voz. e há só o mar.



   QUINTO / O ENCOBERTO


     Que símbolo fecundo
     Vem na aurora ansiosa?
     Na Cruz Morta do Mundo
     A Vida, que é a Rosa.


     Que símbolo divino
     Traz o dia já visto?
     Na Cruz, que é o Destino,
     A Rosa que é o Cristo.


     Que símbolo final
     Mostra o sol já desperto?
     Na Cruz morta e fatal
     A Rosa do Encoberto.




   II. OS AVISOS


   PRIMEIRO / O BANDARRA


     Sonhava, anónimo e disperso,
     O Império por Deus mesmo visto,
     Confuso como o Universo
     E plebeu como Jesus Cristo.


     Não foi nem santo nem herói,
     Mas Deus sagrou com Seu sinal
     Este, cujo coração foi
     Não português, mas Portugal.



   SEGUNDO / ANTÓNIO VIEIRA


     O céu 'strela o azul e tem grandeza.
     Este, que teve a fama e à glória tem,
     Imperador da língua portuguesa,
     Foi-nos um céu também.


     No imenso espaço seu de meditar,
     Constelado de forma e de visão,
     Surge, prenúncio claro do luar,
     ElRei D. Sebastião.


     Mas não, não é luar: é luz do etéreo.
     É um dia, e, no céu amplo de desejo,
     A madrugada irreal do Quinto Império
     Doira as margens do Tejo.



   TERCEIRO


     'Screvo meu livro à beiramágoa.
     Meu coração não tem que ter.
     Tenho meus olhos quentes de água.
     Só tu, Senhor, me dás viver.


     Só te sentir e te pensar
     Meus dias vácuos enche e doura.
     Mas quando quererás voltar?
     Quando é o Rei? Quando é a Hora?


     Quando virás a ser o Cristo
     De a quem morreu o falso Deus,
     E a despertar do mal que existo
     A Nova Terra e os Novos Céus?


     Quando virás, ó Encoberto,
     Sonho das eras português,
     Tornar-me mais que o sopro incerto
     De um grande anseio que Deus fez?


     Ah, quando quererás voltando,
     Fazer minha esperança amor?
     Da névoa e da saudade quando?
     Quando, meu Sonho e meu Senhor?




   III. OS TEMPOS


   PRIMEIRO / NOITE


     A nau de um deles tinha-se perdido
     No mar indefinido.
     O segundo pediu licença ao Rei
     De, na fé e na lei


     Da descoberta, ir em procura
     Do irmão no mar sem fim e a névoa escura.
     Tempo foi. Nem primeiro nem segundo
     Volveu do fim profundo


     Do mar ignoto à pátria por quem dera
     O enigma que fizera.
     Então o terceiro a ElRei rogou
     Licença de os buscar, e El-Rei negou.


     Como a um cativo, o ouvem a passar
     Os servos do solar.
     E, quando o vêem, vêem a figura
     Da febre e da amargura,


     Com fixos olhos rasos de ânsia
     Fitando a proibida azul distância.
     Senhor, os dois irmãos do nosso Nome
     – O Poder e o Renome —


     Ambos se foram pelo mar da idade
     À tua eternidade;
     E com eles de nós se foi
     O que faz a alma poder ser de herói.


     Queremos ir buscá-los, desta vil
     Nossa prisão servil:
     É a busca de quem somos, na distância
     De nós; e, em febre de ânsia,


     A Deus as mãos alçamos.
     Mas Deus não dá licença que partamos.



   SEGUNDO / TORMENTA


     Que jaz no abismo sob o mar que se ergue?
     Nós, Portugal, o poder ser.
     Que inquietação do fundo nos soergue?
     O desejar poder querer.


     Isto, e o mistério de que a noite é o fausto…
     Mas súbito, onde o vento ruge,
     O relâmpago, farol de Deus, um hausto
     Brilha e o mar 'scuro 'struge.



   TERCEIRO / CALMA


     Que costa é que as ondas contam
     E se não pode encontrar
     Por mais naus que haja no mar?
     O que é que as ondas encontram


     E nunca se vê surgindo?
     Este som de o mar praiar
     Onde é que está existindo?
     lha próxima e remota,


     Que nos ouvidos persiste,
     Para a vista não existe.
     Que nau, que armada, que frota
     Pode encontrar o caminho


     A praia onde o mar insiste,
     Se à vista o mar é sozinho?
     Haverá rasgões no espaço
     Que dêem para outro lado,


     E que, um deles encontrado,
     Aqui, onde há só sargaço,
     Surja uma ilha velada,
     O país afortunado


     Que guarda o Rei desterrado
     Em sua vida encantada?



   QUARTO / ANTEMANHA


     O mostrengo que está no fim do mar
     Veio das trevas a procurar
     A madrugada do novo dia
     Do novo dia sem acabar


     E disse: Que desvendou o Segundo Mundo
     Nem o Terceiro quere desvendar»
     E o som na treva de ele rodar
     Faz mau o sono, triste o sonhar,


     Rodou e foi-se o mostrengo servo
     Que seu senhor veio aqui buscar.
     Que veio aqui seu senhor chamar —
     Chamar Aquele que está dormindo


     E foi outrora Senhor do Mar.



   QUINTO / NEVOEIRO


     Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
     Define com perfil e ser
     Este fulgor baço da terra
     Que é Portugal a entristecer-


     Brilho sem luz e sem arder,
     Como o que o fogofátuo encerra.
     Ninguém sabe que coisa quere.
     Ninguém conhece que alma tem,


     Nem o que é mal nem o que é bem.
     (Que ânsia distante perto chora?)
     Tudo é incerto e derradeiro.
     Tudo é disperso, nada é inteiro.


     Ó Portugal, hoje és nevoeiro…
     É a Hora!