Текст книги "Um Julgamento de Contos de Fadas a Colarinho Branco"
Автор книги: Marcos Sassungo
Жанр: Современная зарубежная литература, Современная проза
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Ao ouvir tais palavras, o Sr. Rafael levantou-se, pegou uma xícara de café, aproximou-se do corrimão, suspirou, olhou novamente ao Nico e perguntou: Qual é a idéia vaga que sobrevém à tua mente, quando os teus lábios ou pensamentos se cruzam com a palavra de Deus? Em outras palavras, quem é Deus, para ti? – Perguntou o Sr. Rafael.
– Para mim, Deus pressupõe um conceito muito grande e vazio. Disse o Nico e acrescentou: Grande porque a minha intelectualidade é vazia e pequena demais para entender a idéia do quão grande ele pode ser, mas também vazio porque eu não vejo Ele presente no nada da existência humana. É tanta dor e tanto sofrimento que romantizar a idéia de um Deus me parece um pouco baixo. Mas será que há um Deus por detrás do ser humano? Criador do universo? Esse universo com milhões de estrelas? Mais de oitenta por cento das estrelas são maiores que o sol e aí, você vem dizer-me que estão em contacto com o criador, com essa dimensão toda? Rafael, acorda, amigão, são duzentos bilhões de galáxias contadas, algumas maiores do que outras. Sabes do que isso quer dizer? Isso só deixa claro que o ser humano não é nada. E esse negócio de vida após a morte não passa de uma teoria praticada por intelectuais teológicos a fim de enriquecerem seus desejos obscuros mandando muitas vezes o crente a comprar um milagre. E o tipo é levado a acreditar que se pagar o melhor que tem terá fartura, mas se esquece que é o trabalho que dignifica o homem. A verdade por trás da cortina da vida é que a gente habita a poeira cósmica, acreditando que Deus te manda para o inferno e te castiga com uma miséria, se não o aceitares. Está bom, mas para mim, isso é um jardim da infância e tenho que respeitar, porque existem pessoas que não têm condições de formar um código da sua própria conduta e não têm um nível de consciência e então correm atrás da religião para lhes dizerem o que não podem e o que podem. A religião dá ao homem um princípio de um estar social ético e moral. Só precisamos de reconhecer que o entendimento do ser humano é muito pequeno para entender Deus como um todo. Por isso, Ele é grande.
A conversa foi interrompida por uma chamada telefónica;
– Tio Rafael, eu ligo da parte da mãe para avisar que o papá não resistiu à cirurgia pela manhã e infelizmente faleceu. A notícia agitou as emoções de Nico e do Sr. Rafael. Anderson era amigo de infância de Nico e colega de faculdade do Sr. Rafael. Um dia antes, eles visitaram-no no hospital. Era um homem de sucesso profissional. Ele geria a maior empresa artística e cinematográfica do país. Ele ajudava cantores amadores a tornarem-se profissionais e famosos e, a sua empresa, detinha o maior número de actores e actrizes que encenavam filmes de sucesso internacional. Anderson era um homem famoso inclusive no exterior. Participou em vários filmes gravados em Los Angeles, Hamburgo e Londres. A sua experiência em cinema tornou-o num profissional e teve a idéia de formar uma Empresa de gestão de artistas desde músicos, actores e modelos em Angola. E a notícia estava por todo o lado, nas cadeias televisivas de Portugal, na televisão pública de Angola, tv zimbo e noutras cadeias televisivas nacionais. As pessoas lamentavam nas redes sociais e reconheceram o quanto ele amava fazer o que fazia: tornar realidade os sonhos de muitos cantores e actores, enfim, havia um silêncio total naquele dia de sexta-feira. Nico teve de voltar para o hotel, preparar-se para estar na cerimónia fúnebre de seu amigo.
– Tetinha, cuida da sua irmã. Eu e o seu pai iremos ao funeral do tio Anderson.
– Está bem, mãe. Respondeu a Tetinha.
Esmeralda ficou muito triste quando soube da notícia e isso machucou o seu coração, deixando-a imensamente abalada com a situação.
– Eu sei que você está triste e eu sinto muito. – Disse o Sr. Rafael.
– Todos nós sentimos muito pela morte do Anderson e, quanto a mim, especialmente, não acredito que ele se foi, e como poderemos contar a verdade, amor. O nosso filho vai odiar-nos.
– Disse a Dona Esmeralda, triste.
– Vem cá, amor, dá-me um abraço. – Disse o Sr Rafael e acresceu: Eu amo-te e estou aqui para encarar contigo qualquer situação. Deus está do nosso lado, vai dar tudo certo.
– Mas, amor, eu não vou perdoar-me por essa mentira escondida. Disse a dona Esmeralda, chorando.
– Eu sei, amor. Conta comigo para isso. Deus está ao nosso lado. – Disse o Sr. Rafael.
E os dois abraçaram-se longamente e preparados, saíram para acompanhar, pela última vez, o famoso Engenheiro Anderson. E havia um mar de gente, naquele claustro. Gente de todo lado e de todo país. Havia um coral a cantar “amazing grace” e as pessoas lamentaram e choravam por todo lado. O padre celebrou a missa na presença do ministro da cultura e de outras entidades do governo, além de familiares e amigos. Por outro lado, a Carla, ao avistar Batinho, escondeu o rosto e perdeu-se no meio da multidão.
Nico e o Sr. Rafael estavam no cemitério à espera da comitiva que carregava o corpo e com ele a multidão que o seguia, naquele dia de cinza.
– Neste momento, a minha espiritualidade está na matéria e os meus sentimentos desenvolvem-se com as pessoas ao meu redor. Como posso entender que já não mais verei alguém que conheci, alguém com quem vivemos momentos? A minha maneira de reagir diante das perdas e frustrações, a minha tolerância ou intolerância diante das minhas relações afetivas, o meu julgamento ou arrogância em relação ao tratamento das pessoas ao meu redor, sem dúvida, não preciso da religião para desenvolver a minha espiritualidade no templo das religiões, lá onde todo mundo é santo. Não quero sentir-me nem pastor, nem ovelha e, se eu tenho de me encaixar num grupo, esse grupo que seja unicamente a humanidade. Olha para a multidão, pela última vez. – Disse o Nico ao Rafael e acresceu: com certeza, ele foi um homem de bem. Pelo menos é isso que vai ser dito hoje. E é hoje que se enterra todas as lembranças que ferem a sensibilidade de um homem morto. – Você e eu somos apenas criaturas. – Disse o Sr. Rafael ao Nico: Eu não posso julgá-lo e não poderei fazer. Jesus não era cristão, Buda não era budista, e Maomé não era islamita. Mas há um ponto em comum entre os três homens que citei. Sabes de qual é? Eles falavam de amor. O amor não tem língua, não tem identidade, o amor é uma atitude e isso vai além de dogmas e culturas.
O cemitério ficou invadido pela multidão que acompanhava o Sr. Anderson. As pessoas ladearam o túmulo e atentas, ouviam a pregação do padre, quando dizia: a morte é uma questão fenomenológica ao existencialismo. A morte toca os nossos limites. A morte toca a nossa razão. Só os vivos sabem de que hão-de morrer. Eclesiastes 9, entretanto nós que habitamos a terra, sabemo-lo de alguma maneira e isto acontece, porque há um dualismo entre corpo e alma, mente e espírito que avizinham o homem do conceito mais concreto da morte.
Independentemente do acidente fenomenal que concretizará o penhasco das nossas vidas, há, na espinha dorsal do pensamento humano, a formação de faíscas de idéias de como seria a morte. Todos nós aqui, provavelmente, já teremos nos imaginados numa forma de morte tanto é que prevemos a preferência de tal evento. Há quem prefira morrer doente a estar no meio de uma chama queimando e morrendo lentamente. Há quem ainda prefira morrer a uma arma de fogo a morrer afogado. Mas a realidade é que a tempestade da morte quando chega, traz consigo uma maneira específica para cada um de nós e não importa a forma, não importa o meio através do qual seremos convidados a morrer. A realidade é que iremos morrer e circunstâncias como essas catalisam o advento de idéias, e perguntas do tipo: o que, realmente, é a morte? O que, realmente, há por detrás da cortina da vida? Continuaremos a existir ou a morte pressupõe o fim de tudo? E não duvido que essas perguntas de alguma maneira não sussurraram no passeio dos nossos pensamentos algum dia. Acabou hoje tudo para o Anderson ou ainda o encontraremos no outro lado? Em Eclesiastes nove, Salomão ainda nos mostra que, de facto, não podemos ter por grande pecadora uma pessoa, apenas pelo facto de ela enfrentar grandes calamidades e muito menos pensar que pessoas abençoadas, pessoas que agradam a Deus são exclusivamente aquelas que têm uma vida próspera. Porque, na escola da vida, partilhamos um destino comum a todos nós; sejamos honestos ou desonestos, bons ou maus, puros ou impuros, cristãos ou budistas, teístas ou ateístas. A verdade por de trás do véu da vida é que havemos de morrer. E eu poderia não ter acreditado em vida após a morte ou na encarnação do filho de Deus, na pessoa de Jesus de Nazaré, mas que vantagens eu teria, se eu não acreditasse? Poderia eu ter razões filosoficamente fiáveis de não acreditar na salvação da minha alma. Mas, depois da minha morte que vantagens ou desvantagens eu teria se não acreditasse? E agora vamos imaginar filosoficamente que exista vida após a morte e que por detrás da organização celular procariota e eucariota da complexidade da existência humana haja um Deus. O que eu terei perdido ou o que teria ganho se, aquando da existência do meu ser, no planeta terra, deixasse ou não de acreditar em Deus? Deus não é uma filosofia da questão, mas sim, uma questão filosófica que merece a tentação total do homem.
O nosso querido Anderson nasceu e habitou entre nós. Anderson percebeu que a vida é um desafio constante e enfrentar a vida é um acto de coragem. Não podemos fugir dos nossos desafios. Eles são um chamado à felicidade questionada nos aposentos dos nossos ideiais. Anderson era engenheiro, empresário, e actor famoso e, aliás a nossa presença representa a influência que o nosso amado Anderson tinha em nossas vidas. Mas quem de nós sabe exactamente o que acontecia com ele quando estivesse sozinho, consigo mesmo na posição da solidão? Terá ele descoberto o real propósito da vida? Quem sou eu? Onde estou e para aonde vou? A identidade da nossa existência, está implícita no ser que habita no labirinto dos nossos lóbulos cerebrais. O eu ser da nossa existência determina a identidade da nossa espiritualidade. Somos resultado das nossas escolhas e as nossas escolhas multiplicadas por hábitos fazem o nosso ser. Hoje os títulos, as casas, a empresa e tudo o que ele amava deixou de ter valor e tudo o que resta para nós é a lembrança que ficou. Boa ou má ainda nos lembraremos dele numa calçada, num lugar especial e para ele, está apenas o gritar do silêncio que não vai cessar até a segunda vinda de Jesus Cristo na terra. Mas o que ele teria perdido se quando vivo acreditasse em Deus e vivesse a fé em Cristo Jesus? A resposta a essa pergunta é o vazio do nada. “Vinde a mim, vós que estais cansados e oprimidos, eu vos aliviarei”. Mateus onze. Este é o convite feito há dois mil anos por Jesus à multidão que o rodeava. E hoje ele nos faz o mesmo convite para vivermos uma vida com propósito. Um propósito real. Um propósito sobre o qual vale a pena ponderar e aceitar, porque depois de tudo, de absolutamente tudo, já não restará mais nada, a não ser o silêncio para os mortos e o limiar da esperança para os vivos, aqueles que escolheram viver Jesus em suas vidas. E se hoje ouvirdes a sua voz, não endureçais o coração. Diz o evangelho.
O padre terminou e o coral cantava melodicamente. Havia choros por todo lado. A ideia de que nunca mais veriam Anderson criou uma emoção muito forte no seio de familiares, amigos e fans da celebridade do cinema. Nico e Rafael saíram do local e foram ao hotel Roma onde ele se hospedara.
E na tarde daquele dia, Marquitos, encontrou Carla no restaurante Petisco Gigi e decidiu falar com ela.
– Carla, estou decepcionado contigo. Tu quase mataste o meu amigo de ciúmes, o que tu pensaste, Carla?
– Eu sei e sinto-me culpada por tudo o que aconteceu com ele, Marquitos. E estou arrependida.
– Arrependida? – Disse o Marquitos.
– Sim, arrependida de ter feito o que fiz. Eu estava emocionalmente fragilizada. Não era para ter feito o que fiz, mas me deixei levar e prontos, aconteceu. O momento falou mais alto. Sinto muito mesmo. O Pedro é meu melhor amigo. Nós partilhávamos alegrias e tristezas juntos. Falávamos sobre tudo. Ele era meu best. Nós falávamos muito ao telefone. Em outras palavras, ele era meu melhor amigo até ter surgido o que aconteceu.
– Mas, como é que foi isso, conta-me? – Disse o Marquitos.
– Eu estava a sair da escola. Era suposto a minha mãe vir pegar-me, mas ela não estava a aparecer e quando o Pedro ligou, eu pedi que me desse uma boleia de volta à casa e ele aceitou. Acontece que eu não queria ir para casa, naquela hora e queria estar num outro lugar, porque a minha mãe e o meu pai estavam numa fase de separação e eu não estava a conseguir enfrentar essa situação sozinha e fiquei perturbada, imaginando eu a viver apenas com a minha mãe. E essa situação toda deixava-me triste e foi então que eu sugeri ao Pedro que me levasse a um lugar mais calmo e de preferência um lugar em que pudesse tomar qualquer coisa. Pensei em irmos a Ekuku, na baixa, mas ele disse que como estávamos de carro, poderíamos ir à Chianga dar uma volta e eu, simplesmente, aceitei. Fomos. Depois, começámos a ouvir músicas e comemos o hamburger que havíamos comprado na Ekuku. O clima estava diferente, ele abriu a champanhe e tudo estava a ir na base da amizade. Só sei que, de repente, senti-me atraída por ele e ele me passou a mão no pescoço e beijou-me. Eu não consegui controlar-me, porque o clímax estava muito diferente e a gente que vergonha Marquitos a gente caiu no crime do padre Amaro.
– E você ainda ama o Batinho?
– Eu amo-o, mas já não posso ficar com ele. O meu erro foi letal. Suficiente para afastá-lo da minha vida. Quero procurá-lo nas oportunidades que perdi, mas não consigo, é um passado. Acabou e eu estou a viver os momentos mais cinzentos da minha vida. Eu não vou encontrar um homem carinhoso e especial como o Batinho. Eu não sei. Eu sou uma perdedora. Uma burra por ter traído o meu namorado. E eu nem sequer tenho coragem de falar com ele. Hoje quando o vi, no funeral do Sr. Anderson, eu não consegui conter-me, tive de me perder na multidão.
– Querida, não fica assim, não, você vai conseguir ultrapassar essa situação. – Disse o Marquitos e acrescentou: eu sou de opinião que se tu o amas, precisas provar isso a ele. Deixe ele em paz, não o incomode, deixe o tempo responder por vocês, porque eu tenho as minhas dúvidas em relação a ele poder estar com outra. O Batinho é um cara muito sério, se tiver que ter, terá, mas acho que não será agora e agora que ele está decepcionado. E você continua a falar com o Pedro?
– Eu deixei de falar com ele. Eu soube pela Cíntia que ele falou ao Batinho tudo o que aconteceu. Foi ele que provocou a briga toda. Eu nem sei o que dizer. Amigos falsos, odeio. A minha reputação está deturpada. Não tenho como retificar o meu passado e eu daria qualquer coisa para ter de volta o passado e poder corrigi-lo. Eu quero de volta o meu namorado, mas o que eu fiz é imperdoável.
– Eu entendo, mas não fiques triste. Coisas assim acontecem na vida e temos de ser fortes para qualquer coisa. Agora vamos esquecer o passado e fazer bem o presente para retificar a história da nossa vida. O passado acabou, mas o hoje existe e o bom de tudo é que estás viva dentro dela. Não ligues o que aconteceu contigo e muito menos a opinião das pessoas a teu respeito. Seja firme, seja confiante. Ainda tens um futuro que pode ser promissor e com uma história incrível de amor.
– Obrigado, pelas palavras, Marquitos. Obrigado mesmo.
– Não tem de que agradecer, Carla. – Respondeu Marquitos.
No dia seguinte, pela manhã, Nico partiu de volta a Luanda. E o Sr. Rafael acompanhou-o no aeroporto Albano Machado.
– Eu não sei como tu poderás contar a verdade ao pobre garoto, mas seja breve. Eu sei que o amas e é por esse amor mesmo que eu gostaria que tivesses a coragem de conversar com ele. – Disse o Nico ao Sr. Rafael.
– Está bem, amigão, eu vou conversar com a Esmeralda e veremos a situação, mas, ainda assim, teremos que aguardar o momento certo.
– Mas que seja para breve, Rafael. Tu precisas de apoiar a tua esposa, protegê-la emocionalmente para que os dois possam ver essa situação de uma maneira mais simples possível. Ela vai precisar de ti. Pois o grande desafio é fazer com que o garoto olhe para essa situação como algo normal e, se ele descobrir por ele mesmo? Ele vai perceber que vocês o mentiram o tempo todo. Já estou atrasado para a embarcação, amigo, cuida-te e aguardo-te na reunião dos Accionistas, onde poderemos discutir mais sobre o futuro do projecto.
– Estarei lá, podes crer e a ti também desejo uma boa viagem.
– Obrigado. Disse o Nico.
E os dois despediram-se alegremente no aeroporto Albano Machado, na noite daquele dia de Setembro.
Capítulo IV
O Silêncio da Confissão
Mãe porque ele é negro? Ela não parava de perguntar e quanto mais perguntava, mais fitava os olhos em mim. Continuando, perguntou: mãe porque ele é negro? Ela segurava os dedos da mãe, mexia os quadris e perguntava novamente: mãe porque ele é negro? Alguém, por favor, para ajudar a satisfazer a curiosidade desta criança, de pele branca. Ela só quer saber porque é que eu sou negro. Porque um homem igual a nós que come e anda como nós, senta, escreve e fala a nossa língua tem um tom de pele diferente do nosso? A mãe olha para o seu cabelo grisalho e seu rosto abatido e com chama de uma tristeza de felicidade. Mãe, porque ele é negro? Meu Deus, essa criança não pára de perguntar e espontaneamente troquei de lugar. Só que esqueci de um pormenor, tinha outra criança. Ela olhou para mim e percebi que no seu globo ocular, a glândula lacrimal secretava as lágrimas e, como consequência, elas escorriam em caminhos, no palco do seu rosto, como um sangue oxigenado da veia aorta.
Meu Deus! Porque ela está chorando? Saí, apressadamente, naquele dia, de neve de quinta-feira. Com o inverno, as pessoas cobriam o corpo, outras inclusive o rosto. Eu e os meus amigos estávamos no mercado para fazermos as compras do mês. Já havia conhecido a Esmeralda na época e tudo estava indo muito bem. Eu e o Anderson éramos melhores amigos e para ela, além de ser um amigo, Anderson era considerado como um irmão, um conselheiro, enfim um best friend. Depois de ter pedido a ela em namoro, embora fosse, à distância, cinco anos depois de voltarmos para o país, casámo-nos. Eu trabalhava em Maryland como team-leader, num projecto de perfuração de petróleo e gás e um mês depois, voltava ao país, ao encontro da família e da minha esposa. Anderson, porém, tinha seu escritório na base Sonil e em horas vagas ele almoçava em casa. Bem, isso para mim não era um problema. Ele era um amigo de família de longa data e estávamos habituados com ele e tínhamo-lo como membro da família. O nosso casamento foi um dos melhores do ano e Anderson presenteou-nos com uma viagem à Itália em um dos melhores hotéis de Roma. Foi fantástico. A lua de mel demorou um mês. As férias eram um presente do meu chefe, naquela época, e quando voltámos, tínhamos o nosso esconderijo na Ingombota.
Naquele dia, ela deu-me a notícia mais emocionante do ano.
– Estou grávida. – Disse ela.
– Grávida, amor? Fala sério?! Que notícia maravilhosa e como te sentes?
– Eu sinto-me bem. Que tal amanhã irmos ao médico para reconfirmar?
– Eu acho bom, amor. Maravilha. Respondi entusiasticamente.
No dia seguinte, fomos visitar a ginecologista. Ela foi uma das minhas colegas no passado. Ao chegar, ela disse:
– Olá, dona Esmeralda, a senhora está sozinha ou acompanhada?
– Acompanhada do Marido. Ele está na recepção, já volta. – Disse a Esmeralda.
– Ummmm, pelo sobrenome a senhora deve ser esposa do Sr. Rafael, certo?
– Certo, é ele mesmo.
– E como ele é? Perguntou curiosamente a médica.
– Ele é de estatura alta, tom de pele negro, usa óculos, tem uma voz aguda e a obesidade está tomando conta da sua saúde. – Disse a Esmeralda, sorrindo.
E, enquanto eles conversavam, entrou pela porta o Sr. Rafael.
– Bom dia, Doutora.
– Bom dia, senhor. É o senhor esposo da senhora Esmeralda?
– Sim, sou.
– O Senhor não se lembra de mim, não?
– Espera aí, eu acho que me lembro sim… és a Rossana Tiago. Certamente que sim, estou lembrado. E como o tempo passa tão rápido, Doutora. Como estás?
– Eu estou bem, graças a Deus e tu? Há quanto tempo. Eu não ouço falar de ti há anos. Por onde andou?
– Eu andei no exterior algum tempo, mas já estou de volta.
– Rafael, como você ficou grande. Por um triz não te reconhecia. Foi através do boletim de consulta da sua esposa que eu me revi no seu nome, eu disse comigo mesma que esse nome me era familiar, devo ter conhecido esse nome em algum lugar. Logo depois, eu fiz essas perguntas a sua esposa.
– Que bom rever-te, Rossana.
– Vamos fazer uma ultrasonografia e descobrir quem é. Ela confirmou-nos a chegada do bebê. E eu fiquei tão feliz. Era a maior notícia da minha vida. Sentia-me um herói, um homem feito. Enfim, sentiam-me uma espécie. Levei ela no colo até o carro, fiz um jantar romântico naquele dia e cuidei para que ela tivesse o seu próprio descanso a horas e alguém que a ajudasse a fazer os trabalhos cansativos. Porém, ela frenquentava um clube de ioga. E isso era fantástico, eu queria que o meu filho nascesse super saudável. Oito meses depois, ainda trabalhando nos Estados Unidos, voltando de viagem, eu fui surpreendido por ela em casa com os amigos. Era o chá de bebê. E eu fui coroado como o papai do ano. Foi super fantástico. Todos estavam em casa, tinham balões em casa, bolo, comida e o mais importante havia gente que coloriu o nosso lar com alegria e pelos exames feitos, estávamos à espera de um bebê. Um filho. Um campeão. Foi a minha maior alegria e os meus sonhos, os meus desejos e as minhas orações cruzaram com o bebê. Ser filho, ser amigo, ser irmão, ser esposo já era um desafio para mim. E ser pai, para mim era um desafio ainda maior. Às madrugadas, eu já orava por ele e pedia que ele nascesse e vivesse. Naquele dia do chá, familiares e amigos surpreenderam-nos com vários presentes.
O quarto do campeão já havia sido preparado e, inclusive uma prima formada em designer ofereceu de presente o seu talento, deixando o quarto do rapaz incrível. Um quarto totalmente banhado no azul e branco e eu estava a sonhar na vida real. No nono mês, a Esmeralda deu à luz o nosso primeiro filho, na clínica Girassol, e eu estava presente naquele dia especial para nós os dois. Acompanhei todo o passo até ele nascer. Assisti meu filho chegar e inclusive gravei o seu primeiro grito de socorro e os médicos aplaudiram e nos parabenizaram, naquele dia de sábado. Eu não pestanejei, até que o meu filho nascesse. Voltamos para a casa cansados, mas eu não queria descansar e ficava olhando para ele e assistia, de perto, a inocência do meu filho.
Um dia desses, quatro meses depois, ao chegar de volta do supermercado, encontrei o Anderson discutindo com a Esmeralda.
– Ele não sabe que esse filho não é dele, mas tu, sim, sabes desde o princípio que a gravidez era tua. – Disse a Esmeralda.
– Eu não podia fazer nada, Esmeralda, vocês estavam casados, amor, e eu não podia, de forma alguma, interromper a tua felicidade, querida. – Respondeu o Anderson.
– O que?! Disse a Esmeralda, num tom alto e bravo: Foi falta de responsabilidade masculina da tua parte, pois tu sabes de que eu não amava o Rafael. Você fugiu e não quis assumir a paternidade do teu filho e agora que ele nasceu me vens cá dizer que eu tenho de me divorciar do meu marido?! Anderson, por favor!
– Por favor, o quê, Esmeralda, eu sou o pai dessa criança, eu mereço ficar com essa criança, eu quero ficar com o meu filho.
– Anderson, tu não estavas lá quando ele deu o seu primeiro chute na barriga, mas ele estava. Tu não estavas lá quando ele nasceu, mas ele sim estava e não dormiu. Ele cuidou de mim, ele protegeu-me e amou-me. Ele cuidou do seu filho, enquanto tu estavas, sei lá onde. Tu não me cuidarias do jeito que ele me cuidou. Ele é o pai e não você que é apenas um covarde. Ele sabe que esse filho é dele e ponto final, não se fala mais disso.
E eu, ouvindo isso da porta da minha casa, fiquei chocado com tudo o que eu estava a ouvir e quase que desmaiava. Era uma informação que eu não esperava. Entrei, calmamente, e eles calaram-se, o Anderson envergonhado e triste, tentou justificar o erro.
– Saia da minha casa, agora. – Disse eu.
– Rafael, perdoa-me.
– Saia logo da minha casa, Anderson, agora!
Ele tentou justificar, mas insisti que saísse. E ele saiu.
– Porque, Esmeralda? Porque você fez isso comigo? Esse tempo todo me fez acreditar que o bebê era meu e tu simplesmente não disseste nada?! Eu não sei o que fazer… o que te fez estar com o Anderson, o teu melhor amigo? O nosso amigo? Eu dei-te tudo e tu simplesmente me agradeces desse jeito?! Estou indignado contigo e eu já não sei quem és para mim.
Enfim, peguei no carro e saí de casa. Peguei a estrada para o Ramiro e enchi-me de álcool, naquele dia. Ainda assim dirigi o carro de volta à ilha de Luanda e passei lá a noite, olhando para cá e para ali ao céu azul estrelado no escuro, tentei assimilar a falsa realidade que eu estava a viver. Desliguei o telemóvel e não queria saber de mais ninguém.
Foi o meu pior momento. Eu queria esvair-me da vida, mas também não poderia fazer tal coisa logo, para esquecer e fingir a realidade, tornei-me amigo do álcool. A família estava preocupada, porque não tinha notícia de mim. E eu só queria ficar embriagado. E no domingo, à noite, decidi sair da floresta da ilha para ir ao Benfica. Eu só queria estar num lugar diferente e foi assim que eu dirigi o carro, todo embriagado, e, ainda assim, consegui levar o veículo até ao destino, mas aí, pela estrada, em alta velocidade, bati num camião e o carro ficou totalmente sem forma e perdi a memória, naquele acidente. Dois dias depois, acordei no hospital do Américo Boa Vida.
– Ho! Graças a Deus o senhor acordou. Seja bem-vindo de volta à vida.
– O que aconteceu a mim? – Perguntei.
– Literalmente, o senhor estava morto. Não encontrámos nada que pudesse identificá-lo. O senhor lembra-se de alguém da família para entrarmos em contacto com ele?
– Sim, a minha irmã. Ela deve estar na cidade, por favor, chama ela Dr. E eu, como estou de saúde? – Perguntei.
Dei o número telefónico e em trinta minutos a minha família veio ter comigo no hospital.
– O Senhor está com traumatismo craniano. – Disse o Doutor que me examinara.
– O que é isso, Dr.? Qual é a gravidade desta patologia? Aí ele trouxe uma maquete, o esqueleto da cabeça, com uma esferográfica, explicou:
– O espaço entre a caixa craniana e o cérebro é preenchido pelas meninges e pelo líquor. Qualquer movimentação brusca pode resultar num trauma. O traumatismo craniano pode ser causado por qualquer força externa suficiente para ocasionar danos no cérebro. Os acidentes de viação, por exemplo, são uma das causas. As lesões podem ser transitórias ou definitivas. Assim, uma fractura óssea pode acabar atingindo o cérebro. Além disso, há o risco de perda de parte da massa encefálica. Mas, felizmente, para o Senhor, os exames deram resultados de ser apenas uma lesão transitória. O Senhor vai estar bem. O Senhor teve muita sorte de sobreviver, pois o seu carro ficou totalmente danificado no acidente.
Tentei entender tudo o que o médico me havia explicado, mas diante de toda aquela situação, agradeci a Deus e vinte minutos depois, os meus familiares chegaram.
– Nós sabemos do que realmente aconteceu mas, filho, você tem que ser forte. – Disse o meu pai.
– Obrigado, pai.
Meu pai abraçou-me, chorando e disse:
– Filho, vai ficar tudo bem. Você não precisa sofrer assim.
Enfim, recebi visitas de amigos e familiares, no hospital. E um mês depois, recebi alta e voltei para casa e ela estava vazia.
– Onde está a Esmeralda, minha esposa, pai?
– Infelizmente filho, quando ela soube de que você estava no hospital, decidiu sair de casa.
– O lugar dela é aqui, pai será que vocês expulsaram ela de casa?
– Não, filho, nós não fizemos nada.
No dia seguinte, soube de que ela estava em casa da sua mãe e eu fui ter com ela e quando ela me viu, ela chorou muito.
– Perdoa-me, Rafael, por favor, por tudo.
– Eu perdôo-te mas volta para casa. – Disse eu. Vamos-nos acertar.
– O que?! Com toda essa situação que aconteceu, tu queres voltar comigo? – Perguntou a Esmeralda.
– Quando eu era adolescente, eu disse comigo mesmo que me casaria apenas uma vez e eu não quero outra mulher comigo, se não tu, e claro, se quiseres. Mas se não quiseres, eu vou considerar e respeitar a tua decisão e seguir em frente.
– Eu aprendi a amar você aos poucos, Rafael, apesar de tudo o que aconteceu e eu não consigo imaginar-me a viver com outro homem também. Mas o que eu fiz contigo não tem perdão. Tu precisas de seguir em frente e encontrar uma outra pessoa, um outro destino no amor. Eu cometi o maior erro da vida e o pior pecado do mundo. Eu não te mereço. Eu não mereço viver. És uma pessoa incrível. Vá, Rafael, há por aí ainda mulheres fiéis em que se pode confiar e tu mereces uma mulher fiel, digna do teu amor. Mas se me deres uma oportunidade, retificarei a minha história com as páginas brancas do presente. – Disse a Esmeralda.
– Eu vou dar sim uma oportunidade, aliás, vamos dar-nos uma segunda chance. Vamos sair desta cidade. Vamos para o Huambo e lá há uma casa que acabei de comprar. O que seria da vida, se amássemos apenas as pessoas que nos amam? Porque respeitar somente aquele que nos respeita? Eu não posso fazer um julgamento de contos de fadas a colarinho branco. Eu não sou Deus para julgá-la. Eu sou homem pecador e limitado em tudo. Eu não passo de uma sombra e a vida é curta demais para simplesmente deixar de amar. Eu quero viver contigo até que a morte nos separe. Pode parecer loucura, mas eu não vejo outra maneira de amar, se não dar o pouco do muito que recebo de Deus. Deus nos ama incondicionalmente para retribuirmos com amor incondicional às pessoas ao nosso redor. É fácil amar quem já nos ama. E todos desistem de um amor não correspondido assim tão facilmente. E fico imaginando o que seria de mim se Cristo desistisse de mim por conta de eu não corresponder a esse amor? Olha que há dias eu quase morria num acidente que não devia ter acontecido, mas aconteceu. Pelo estado físico do carro, eu entendo que não sobrevivi ao acidente por acaso. Eu não me considero especial, Esmeralda. Mas eu devia ter morrido como uma pessoa normal. Sou imperfeito, mas Deus me devolveu a vida. Ora, se ele ma devolveu, quem sou eu para não perdoar? E se Ele assim o fez, quem sou eu para não dar uma segunda chance? Eu sei que estou no direito de te abandonar, mas eu não quero fazer isso por opção. A vida é curta de mais para simplesmente deixar de amar. E eu não quero viver a minha segunda chance com outra pessoa, eu quero viver a minha segunda chance com a mulher com quem eu me casei e tu és a mulher com quem eu jurei a Deus no altar, que mesmo em situações difíceis, eu estaria contigo. Por Deus eu te peço. Volte para casa.
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